26. Solidão simulada

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Não há a possibilidade de estarmos sozinhos, seja no presente, no passado ou no futuro, entretanto, a solidão é plenamente possível, afinal, ela não é um fato, é uma sensação, e ela cabe a nós simular, criar e manter. São nesses momentos em que as ilusões e as dores da alma afloram, mas também é o momento mais propício para nos imunizar contra nós mesmos.



Mais uma vez, estava correndo. Já havia se tornado um costume, um fatídico ciclo vicioso, hora se paralisava de tristeza, hora corria de medo, não sabia dizer de onde essa mania surgira, se veio dos espíritos ínferos, de João ou do garoto que costumava ser. Talvez, todos tivessem tido uma parcela de influência em seu ser, um pedaço da culpa por estar com a garganta ardendo de tão ofegante que se encontrava. Foi nesse momento, enquanto diminuía o ritmo pela exaustão e começava a caminhar que refletiu que não estava fugindo de nada em específico, na verdade, estava procurando algo. Se encontrava tão absorto em sua procura que não prestava atenção em absolutamente nada ao seu redor, seja o caminho que seguia, os espíritos que o rodeava, a chuva que já não mais se escondia ou, sequer, em seus próprios passos que já haviam se tornado automáticos como a respiração, um plano de fundo para seus pensamentos.

Estava desde o início procurando, fosse sua mãe, Isabella, fosse seu pai, Rodrigo, fosse, posteriormente, Vicente, Andreza, Silva, Freitas e, agora, Anthony. Talvez esse tenha sido o seu erro, o que aconteceria se, ao invés de correr atrás dos outros, apenas buscasse melhorar de vida? Quer dizer, não é isso que seus pais queriam? Não seria o melhor uso para a identidade de João? E deixar com que Silva e Anthony fossem obliterados não evitaria mais tempo de dor para eles e para João? Essas eram perguntas que o garoto sabia a resposta de cada uma, mas não queria aceitar, ele só precisava descansar um pouco.

E assim o fez, ao fechar os olhos e agachar-se em um canto qualquer, só então pôde perceber aonde estava, Distrito 2-1, mais especificamente, na fronteira entre o território dos escorpiões e o restante da Cidade Escura, ao lado da sede mais decadente do Conselho. Conseguiu reconhecer tudo isso não apenas pela arquitetura do prédio ao seu lado, pois são todas muito similares em toda a cidade, mas devido à concentração de fiéis do Cristianismo, sabia que se tratava do prédio mais desvalorizado do Conselho, somente aqui os reguladores não interviriam em suas pregações espalhafatosas.

— Vocês sabem que o que digo é verdade!!! — Gritava um dos fiéis. — O pós-vida é uma enganação dos servos do demônio! Eles trazem desgraça para a nossa cidade, não há como eles escravizarem nossas almas, não caiam em suas mentiras, meus amigos!

João revirou os olhos em uma genuína expressão de desprezo, algo raro para ele se considerarmos a sua situação. Isso se deve porque, desde criança, sua mãe, Isabella, dizia a ele o quão idiotas esses revolucionários negacionistas denominados cristãos eram, afinal, eles surgiram do nada, literalmente de um livro encontrado no lixão e, o pior de tudo, negavam a existência da vida após a morte como conheciam, mesmo com toda a base da sociedade em que vivem se firmar e praticar justamente isso diante de seus olhos.

— Amanhã à noite — continuou o fiel — o nosso mentor, Gerson, revelará a verdade para todos nós... ele sabe... meus irmãos! Ele conhece o passado, o presente e o futuro! Somente ele pode salvar a nossa cidade da miséria e livrar o nosso verdadeiro espírito do pecado, livrar-nos desses aparelhos implantados que sujam as nossas mentes.

Era impressionante como o ato de ouvir passivamente aquelas palavras já conseguiam causar fadiga nos ouvidos e em todo o restante do corpo e mente, parece que não importa o quanto João corra, sempre haverá algum ruído que o impedirá de ouvir a si próprio.

Cinéreo: As Luzes da Cidade EscuraOnde histórias criam vida. Descubra agora