Capítulo 5 "Lar, Amargo Lar"

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Se o tempo cura tudo, o remédio para minha relação com meu pai, após aquela briga, é dado através de conta-gotas. Devagar, com gosto amargo e sem fazer efeito.

Muitas vezes, o filho em mim deseja se desculpar, se retratar, pedir perdão por ter sido desrespeitoso. Afinal, ele era meu pai e, bem ou mal, nunca deixou de suprir minhas necessidades mais essenciais. Além disso, não era mulherengo, alcóolatra nem viciado em qualquer substância que pudesse nos colocar em perigo, e as discussões com minha mãe, apesar de constantes, nunca foram violentas. E, por tudo isso, devo ser grato, principalmente ciente de toda a dificuldade que ele enfrentou, durante sua vida, até chegar aos Correios, para que nada faltasse aos filhos, como havia faltado em sua própria infância.

Ainda me lembro (eu devia ter três, quatro anos) de vê-lo sentado horas e horas, corpo debruçado sobre a mesa da cozinha de nossa antiga casa, estudando. Uma montanha de livros ao lado, cabeça baixa com olhos grudados no caderno diante dele. Peterson e eu brincando ou brigando, enfim, fazendo barulho, e a mãe sussurra, Silêncio, meninos. Papai precisa estudar. Vez e outra, ele levanta a cabeça, coça os olhos, alonga o pescoço. Gira e levanta os ombros carregados de cansaço. Todos vão dormir, mas ele continua lá, sentado com seus livros, até altas horas da madrugada. Dormiria apenas por algumas horas antes de levantar para ir ao trabalho, não lembro qual. Só sei que pagava pouco para alguém com tantas despesas, muitos sonhos e grande ambição.

Quando essa fotografia mental toma meu pensamento de assalto, o filho em mim me sussurra, Vai, diz para ele. Reconheça o seu empenho como cuidador da família, deixe-o saber que é grato. Com todos os seus defeitos, ele havia cumprido muito bem aquele papel. Mas o garoto ainda ressentido com o pai distante e nada amoroso continua inflexível.

Enquanto o filho me impulsiona na direção dele, esse garoto me puxa para trás. Fala – não com sussurros apaziguadores, mas com a retumbância da voz que precisa guerrear pra se sentir viva – o quanto meu pai havia sido egoísta. Ele te decepcionou, Cadú. Quis acabar com sua amizade com Jonathan e, não conseguindo, ameaçou tirar você da orquestra. Por isso, precisou se defender, erguer a voz, caso contrário, seria engolido pelo autoritarismo dele. Se alguém tem que pedir desculpas, esse alguém é ele, não você!

Bem, não tem jeito de meus dois eus se entenderem. Então, acho melhor ficar quieto e esperar o momento em que minhas duas partes entrarão num acordo (se entrarem). Porque, dividido, impossível tomar a melhor decisão.

Durante esses dias de tensão, tentamos nos evitar mutuamente, eu e meu pai. Saímos de um cômodo quando o outro entra ou, permanecendo, ficamos com o corpo rígido, quase sem respirar, porque não sabemos o que fazer ou dizer, nem como olhar um pro outro. Nessa época, meu irmão já não morava conosco.

Após três anos de tentativa e estudo, de suor e lágrima, Peterson, finalmente, e para orgulho de toda família, conseguiu passar no Enem com tal pontuação que pôde escolher a USP como sua universidade. Medicina! Dá para imaginar um garoto de São João de Meriti, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, cursando medicina na Universidade de São Paulo? Um sonho realizado por poucos nesse nosso Universo de discrepâncias sociais, onde aqueles que mais precisam das melhores instituições públicas, em sua melhor performance, são, justamente, os que passam a vida boiando na parte mais larga do funil. Quase nunca atravessam o tubo que os colocaria dentro delas.

Não meu irmão.

Com sua ida para Ribeirão Preto, o silêncio do meu pai se torna ainda mais profundo. Acho que estava triste e perdido, e minha mãe chegou a me dizer em segredo que ele andava chorando escondido. Algo que eu já sabia. Um dia, acordei de madrugada para ir ao banheiro ou beber água, não lembro mais. Lembro a sua sombra emoldurada pela janela da sala. A luz da lua mostrava os contornos de uma massa imóvel. Quando vi aquela forma no sofá, parei os passos. Coração batendo forte, porque, até onde minha percepção conseguia discernir dentro da penumbra, aquele vulto não pertencia ao grupo de móveis que habitavam nossa sala, nem parecia ser um dos membros da família. Observei, quieto. A cabeça, imaginando mil e uma possibilidades de ações que eu poderia tomar. Ir até o sofá, voltar pro meu quarto, bater na porta dos meus pais, pegar o celular e ligar para a polícia... Se fosse um ladrão... Mas que ladrão resolveria fazer uma pausa, sentado no sofá da casa de suas vítimas, correndo o risco de ser pego?

Foi, então, que, no turbilhão de tantas ideias, escutei meu pai fungar uma, duas, três, várias vezes. No mesmo instante que meu queixo caiu, meu corpo relaxou, assim como o coração desacelerou. Meu pai não estava resfriado, então... Mas não podia ser... Não sei qual dos dois sentimentos me tomou naquele instante: perplexidade ou incredulidade. Acho que os dois com a mesma potência. Aquele homem podia mesmo derramar alguma lágrima? Só que não havia dúvida. A sombra se moveu durante algum tempo, e me dei conta que secava os olhos, enquanto chorava.

Pobre coitado...

... de mim. Porque, um resto de inocência infantil da qual acreditei estar livre e curado me sussurrou a ilusão de que ele chorava por minha causa, que sua tristeza era arrependimento. Mas a minha mãe abriu meus olhos outra vez, e pensei, Pobre coitado dele. Porque havia dado todo o seu amor pro seu filho mais velho, o primogênito, e, agora que Peterson havia partido, o filho que restou não era suficiente para tampar o vazio daquela ausência. Todo o amor daquele homem como pai foi direcionado pro Peterson. Nada restou pra mim. No funil que é meu pai, continuo a boiar na boca larga sem nunca conseguir atravessar o tubo que leva ao coração dele.

Pobre de nós dois.

Meu irmão e eu não éramos próximos, muito menos amigos. Mas não nos odiávamos, sabendo que ficaríamos atrelados um ao outro por causa dos laços de família. Apesar de nossas incompatibilidades – afinal eu era cinco anos mais novo e posso dizer que nossos interesses se distanciavam tanto quanto os anos que separavam nossos nascimentos – sempre soube que Peterson não era má pessoa. Apenas sabia bem se aproveitar de sua posição privilegiada de filho-preferido-do-papai. Principalmente quando isso me colocava numa posição de desvantagem ainda maior.

Até que é fácil entender. Heróis precisam de vilões, caso contrário, suas habilidades excepcionais passam despercebidas. E do que adiantariam, no final das contas?

Já eu fazia o mesmo com nossa mãe, que costumava me defender e repreender meu irmão quando ele me dedurava pro pai. Se bem que ela sabia se equilibrar com mestria durante nossa briga de puxar a corda de sua atenção, na tentativa de conquistá-la pro nosso lado. Também diferente de meu pai, ela conseguia dar a mesma qualidade de amor aos dois filhos. Só mudava no modo, porque, como eu era o mais carente, acho, não, sei, ela sentia maior necessidade de me abraçar e beijar e dizer o quanto me amava. Uma questão de contrapeso parental, que Peterson compreendia e aceitava bem.

Mesmo com nossas brigas e discussões, sinto falta do meu irmão. Nessa casa carregada de silêncio, suas brincadeiras e piadas ajudariam a diminuir o abismo entre nós, os que ficamos para trás.

Todo o Amor do MundoWhere stories live. Discover now