Capítulo 8 "O Intruso"

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Dois dias depois, o enterro. Faz tempo que não entro num cemitério. Desde a morte de minha avó, mãe de minha mãe, quando eu tinha nove anos. Mas é diferente agora. Aos nove anos, estava curioso, até animado, com a expectativa de conhecer aquele mundo misterioso, que provoca desconforto nos vivos.

Passeio pelo lugar com a curiosidade de um turista que deseja guardar na memória cada canto da cidade visitada, na qual tem certeza, absoluta, que nunca, nunquinha, vai morar. Observo cada túmulo, cada foto, cada jazigo perpétuo, cada jarro com flores murchas ou frescas e leio todas as informações nas lápides. Entro e saio de capelas de gente desconhecida, reparo os mortos nos caixões. Ziguezagueio pelas ruelas de paralelepípedos que correm entre os túmulos e as quadras como se eu caminhasse num labirinto, inconsciente de que aquele leve cheiro adocicado e enjoativo não vinha das árvores.

Lembro que corujas pequenas se empoleiravam no topo das lápides ou das esculturas, virando os pescoços a cento e oitenta graus para um lado e para outro. Seus olhos enormes e arredondados observando o lugar com a mesma curiosidade que brilhava em meu olhar. Por isso, gostei tanto delas e até acho que tentei capturar algumas para tê-las como ave de estimação.

Mas, se durante o dia minha aventura parece até divertida e eu me comporto como um explorador corajoso, à noite, todos aqueles rostos de gente morta me visitam. Não lembro o conteúdo de meus sonhos, especificamente, só sei que tive um sono intranquilo e que acordei a casa com gritos de pavor. Só volto a dormir depois de tomar um copo de chocolate quente, preparado por minha mãe e degustado enquanto ela cantarola baixinho, acariciando minha cabeça. E seu beijo na minha testa faz meus olhos fechar e os monstros desaparecer.

Porém, nos dois dias de suspensão, após a morte de Jonathan, durante os quais a vida aguardava o fechamento do capítulo daquele livro de terror, nenhum beijo, nenhuma carícia, nenhum chocolate quente e nenhum canto podem me fazer dormir tranquilo. Cada vez que meus olhos cedem ao sono, acordo de novo com um sobressalto. Busco alguém na cama ao lado, o meu irmão, mas há apenas vazio. Então, olho a escuridão ao redor de meu quarto solitário, à procura do fantasma que havia sussurrado em meu ouvido, sem, no entanto, encontrá-lo.

***

Não preciso, nem quero, contar os detalhes do enterro do Jonathan, onde meu pai, sentado numa das primeiras fileiras, parece um intruso na tristeza alheia. Não sendo mais o garoto curioso e inocente de nove anos de idade, sei que cemitérios não são cidades nem labirintos que valham a pena um passeio exploratório. Também prefiro não ver o caixão dele. A presença constante de tia Adélia e seus olhos caídos e as carícias de sua mão fina e seu sussurro bastam para atestar que o corpo de meu amigo se encontra mesmo lá dentro.

A orquestra do projeto presta homenagem ao Jonathan. A presença de todos os músicos, diretores, monitores e até do pessoal do administrativo me mostra que eu não sou o único que o ama, que sofro com sua morte, que lamenta por não ver nunca mais seu sorriso.

Enfim, nos colocamos ao redor da cova e, enquanto seu caixão desce lentamente, tocamos sua música preferida. Sinfonia do Novo Mundo. 2º movimento. Dvoräk. E, nesse momento, sou tomado por uma paz infinita. Leva embora, pelo menos por ora, todo o ódio que consome minha mente. Ódio contra meu pai, contra o tira-bicho, contra o parceiro inútil. Ódio do mundo, de tudo e de todos. Vejo quando as notas se tornam pontos reluzentes como faíscas a se desprender de uma fogueira. Vejo ainda outros pontos luminosos, esses prateados, saindo de dentro do caixão de Jonathan (seu espírito?) e se misturando com as faíscas musicais. Juntos, dançam; juntos, flutuam. Juntos, enchem todo o cemitério e, logo, ultrapassam os muros. Espalham-se por toda a parte como um enxame de vaga-lumes prateados e dourados.

Todo o Amor do MundoWhere stories live. Discover now