Capítulo Quatorze: Um Demônio Sonhando

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O capítulo a seguir contém cenas fortes.

“O que são os mortos, afinal, senão ondas e energia? Luz brilhando de uma estrela morta?"Donna Tartt, A História Secreta.

Aquela Noite era uma sucessão de erros na residência Lan. Era 1977, um ano comum sem muitas ocorrências — a não ser o lançamento de Stars Wars e a morte de Elvis Presley alguns meses atrás —, mas no número 8, na pequena vila em Luss, ocorrências eram uma frequência extremamente constante; Lan WangJi e Lan XiChen eram os únicos filhos de Christine Lan e Lan FanRen. Eles eram o que poderia ser considerado uma família de classe média: Lan FanRen trabalhava numa firma em Glasgow, a duas horas de distância — era ele quem sustentava a casa, providenciava a comida, pagava as contas e permitia que nada faltasse.

Mas não era ele que dava vida àquela casa. As pessoas que dão vida a uma casa nem sempre são as mesmas pessoas que a construíram, ou a que a sustentam — essas pessoas, na verdade, são apenas fantasmas, indo e vindo, enquanto as que não iam, deixavam o ambiente mais iluminado, que faziam o mundo parecer menos cinza em um lugar que não os achava adequado para morar ali por conta de sua etnia, por conta de sua língua, por causa de quem eram. No entanto, Christine defendia os filhos com as próprias unhas se fosse preciso. Ela os levava na escola, e ignorava os comentários dos outros moradores, distraindo seus filhos com histórias sobre a época em que morava em Nova York, depois em Los Angeles, antes de decidir vir para a Escócia com o pai deles. Havia uma saudade na maneira com que ela sempre contava essa história — seria saudades dos lugares que morara, ou de quando nada disso existia? Lan WangJi, Lan XiChen e um marido ausente que deixava uma marca desagradável sempre que estava em casa?

Lan WangJi nunca descobriu.

Ela morreu antes.

❄️

A relação de Lan WangJi com seu pai nunca fora boa. Era como se fossem dois estranhos vivendo em uma mesma residência, e apenas quando eram mediados por Christine, ou por Lan XiChen, que sempre tentava proteger seu irmão caçula, eles, de fato, conversavam. Ele nunca pôde culpar seu pai por não o ter amado.

A primeira vez que Lan WangJi apanhou dele, ele tinha apenas sete anos. Ele estava rindo com Lan XiChen no quarto, que o segurava pelas mãos enquanto ele tentava andar no sapato de salto alto preto e brilhante da mãe. Christine havia saído para um encontro do clube do chá que havia em Luss, e eles não esperavam que seu pai fosse chegar tão cedo — e eles não viam problema no que estavam fazendo. No instante em que Lan FanRen abriu a porta, o sorriso de Lan WangJi se desfez, porque o que ele viu nos olhos do pai escapava toda e qualquer demonstração de amor.

Aquela foi a primeira vez que ele apanhou, mas, infelizmente, não foi a última. Lan WangJi percebia, a cada vez que passava, dia após dia, mês após mês, que havia algo de errado com ele; Lan XiChen, que já era um adolescente nessa época, chorava de raiva e resmungava os palavrões mais sórdidos enquanto segurava Lan WangJi, enquanto acariciava suas costas, o acalmava, o prometia que a "mamãe vai voltar". E Christine sempre voltava, e quando ela viu o que ele fizera com seu filho naquela primeira vez, ela resolveu o confrontar.

E então, o ciclo começou.

Às vezes, a porta da frente batia com tanta força que Lan WangJi sabia que aquele dia não seria bom. Ele corria de onde quer que estivesse na casa — geralmente no andar de cima —, e escondia-se atrás da enorme sacola de brinquedos que havia no seu quarto, ao lado da cômoda. Era cheio de poeira ali, porque ele nunca limpava, mas ele se sentia seguro, escondido e a salvo das palavras e dos punhos de seu pai. Ele preferia se esconder — pensava ele naqueles momentos excruciantes que seu coração batia com tanta força que parecia prestes a sair pela boca — do que fazer Lan XiChen ou sua mãe serem os alvos da fúria de seu pai.

Eternal Darkness - LIVRO UM | WangXianWhere stories live. Discover now