carta a meus traumas 01

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SP, 15 de Junho de 22

— Sangue jovem.

      Você sabe que não posso lhe salvar, mas alguma parte minha ainda me sussurra a obrigação de te arrancar do poço em que se soterrou. Talvez seja o sangue que nos conecta tão vividamente, ou teu espelho que me salvou de reproduzir uma nova e pequena você.

       Eu sei que sua vida não pertence às minhas pequenas assas, nem que suas decisões tem de pesarem em minha vida ou suas rudes razões caibam nas minhas, mas suas marcas me remetem aquele mesmo dia, me fazem escrava das lembranças amargas que cativam meus lábios trancados.

       Eu não digo nada. Eu não ousaria infligir minha mera opinião inválida e fútil sobre sua vida tão líquida e rasa, seria como lhe deixar escapar por meus dedos, como soltar-lhe no mundo com apenas a presença de Deus e eu não posso confiar ele a ti, pois você jamais confiou com tanto afinco em quem lhe protege nas sombras e todos cansam, Deus também é humano.

       Mas eu sou marcada, uma brasa viva que incendeia minha alma abluida nos lençóis daquela tarde. Eu e você, apenas eu e você até ser apenas eu e medo.

       Seu corpo vazio preâmbulou pelos móveis, se fundindo as paredes e quaisquer coisas que não dispunham vida. Estava morta, um cadáver oco que dançava pelas paredes em espirais atormenticos. Eu e você.

       O distúrbio do encontro do seu silêncio com meu em meio as paredes gélidas e olhares cansados. A morte vinha convidativa, sentava-se e compunha a terceira companhia da casa. Eu, você e ela.

       Minhas rasas noções não foram capazes de armar uma corda que pudesse te jogar, mesmo assim, você se enforcou não tendo nenhuma. Todos os dias você escolheu, foi arrancada do meu lado para tortura de viver, e fez isso em silêncio. Um silêncio que sangrava em meus ouvidos todas as noites e semanas, era ensurdecedor.

       E eu sinto muito que não pude te resgatar e te segurar, agora você está com pus nas feridas e apodrecendo pelas beiradas. Tão frágil e quebradiça, treme por inteiro ao meu lado e busca abrigo que eu jamais serei capaz de lhe dar, por que eu não estou apta para segurar seu mundo e você nunca me pediu que fizesse.

       Mas somos eu e você.

       Eu e você num eco estridente que parte meus átomos e flagela minha alma crua, me estraçalha na presença de teu mero olhar e me sufoca na lembrança aguda que não se revela, mas que era eu e você.

       Eu sangro sobre isso, uma alucinação fiel que me envolve nas feridas de outros para que eu as costure, estou sempre salvando outros porque não pude lhe salvar.

       Este teatro se abre e fecha, enfeita as labaredas dos meus ossos e rasga minha pele com sutileza. É devagar e cirúrgico, ainda muito marcante e se revela em todas as minhas relações, virei uma viciada, uma alucinada com uma missão divina que não inclui meu bem estar. Estou morrendo. Somos eu e eu.

       E sempre que você precisar de alguém para despejar suas sonoridades e lágrimas, alguém para manchar as mãos de sangue ou largar na estrada, seremos eu e você. Eu sempre estarei lá. Uma sombra quieta escrava da culpa.

       Eu queria poder ter salvado você. Assim seríamos, para sempre, eu e o você.

De: Uma alma marcada
Para: Sangue do meu sangue.

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