DISSECAÇÃO

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Você não se interessava muito por Michael Jackson antes de mim, mas começou a ouvir Thriller por minha causa e depois de dois dias, já estava morrendo de vontade de cantar comigo dentro do ônibus.

Nós tivemos de nos segurar para não começar a dançar e a agir como dois idiotas na frente de todo mundo.

Ontem, um colega de trabalho idiota disse que estou parecendo um zumbi. Não se preocupe, eu não me ofendi. Ele falou a verdade. O que eu fiz foi me perguntar se você ainda gosta dessa música.

É que ultimamente estive pensando em como eu não te conhecia. Você nunca me disse se tinha uma música favorita. Você nunca me falou sobre a sua infância. Você nunca atendeu a nenhuma ligação da sua mãe na minha frente, e sobre o seu pai, só disse que ele morreu.

Enquanto estava com você, gostava de pensar que era porque tinha acontecido aquele mesmo fenômeno contigo: o de ganhar a vida, após me conhecer. Só que agora parece que você se escondia de mim.

E eu me sinto tão, tão idiota.

Entro em casa, pego nossa história, tudo o que vivemos juntos, jogo em cima da mesa, corto com uma faca bem ao meio e vou retirando pedaço por pedaço, tentando dissecar cada instante. Nossos olhares no ônibus, você conversando comigo, eu te chamando para sair, nosso primeiro beijo, nosso primeiro eu te amo, todas as nossas conversas, tudo. Encontro tantas coisas erradas que fico louca.

Mas não me entenda mal, em você eu encontro pouca coisa fora do lugar. O problema está em mim. Minha nossa, é horrível admitir, mas o meu colega chato está certo: eu sempre fui um zumbi. E você também percebeu isso. Só que ao invés de me avisar, como ele fez, tú preferiu ir embora da maneira mais covarde possível.

Passei tanto tempo te culpando, tendo raiva de você por ter destruído algo lindo tão abruptamente que me esqueci de analisar a minha parte. E agora eu vejo que estive acabando com isso muito antes de você.

Porque quando você apareceu, eu te coloquei em um pedestal lá no alto. Lindo, cheiroso e educado. Você pareceu a grande virada na minha vida. E foi mesmo. Antes de você, eu passava dias debilitada, pensando na minha existência e em como era estúpida. Estudei porque tive de estudar. Esperei até o último segundo para alguém decidir por mim se eu iria fazer algo da minha vida adulta, e quando ninguém o fez, comecei a trabalhar com telemarketing. Aguentei todo o tipo de desaforo porque achei que merecia isso, já que eu não tinha nenhum sonho e não me encaixava em outro lugar. Rastejei atrás de qualquer coisa que preenchesse esse meu vazio, que me trouxesse um pouco de emoção, um pouco de vida, um pouco de objetivo.

Então você apareceu. O príncipe num cavalo. Aquela velha história que minha avó me contava. Você foi a realização de um sonho. Caramba, seu ar foi tanto que eu realmente acordei para a vida. Fui até promovida no trabalho. E eu fiz questão de te contar isso em todos os momentos possíveis, para que você não se esquecesse do quão importante era na minha vida.

Sem você, eu não era nada.

Hoje entendo que, o amor necessita de cultivo, cuidado e carinho de ambas as partes envolvidas, não apenas de uma. E eu estava te sugando, devorando seu cérebro, não cultivando nossa relação, e isso deve ter assustado.

Agora eu consigo te entender. Isso faz com que minha raiva de você diminua consideravelmente, e a raiva contra mim mesma triplique.

É como Taylor Swift já dizia em Happiness, “ninguém te ensina o que fazer quando um bom homem te machuca, e você sabe que o machucou também.”

(de)composiçãoWhere stories live. Discover now