RESSEQUIDO ATÉ O PÓ

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Assisti de camarote enquanto meu interior pegou fogo durante muito tempo. A vida parecia ainda mais vazia do que era antes de você. Na verdade, descobrir que eu estava sugando de você o que me faltava não fez tanta diferença quanto eu achei que faria.

Tentei te mandar mensagens, como não fiz nos primeiros meses, mas você não respondeu. Apareceu até uma mensagenzinha avisando que tinha mudado de número. Seus amigos deixaram de me seguir nas redes sociais e eu te odiei por isso, eles eram legais. Por causa do maldito carro você não andava mais de ônibus e nossos caminhos nunca mais se cruzaram. A sensação de perda foi ainda maior durante os meses seguintes. Antes, eu ainda tinha uma pequena esperança, alimentada por todo o amor que deixei guardado para você, mas depois disso, todo esse sentimento se transformou em dor e saudade.

Demorou muito, te juro, para eu aceitar que mesmo se invadisse seu trabalho, você ainda assim me evitaria a todo custo.

Nós não existia mais.

Depois de mais algum tempo, o fogo que me consumia transformou todo o meu interior em cinzas. Fiquei ainda pior do que um Zumbi. Eu literalmente me transformei em nada. Parei de me importar com tudo e tenho a leve impressão que minha chefe só me deu férias porque não queria me demitir.

Sozinha, tudo o que eu fazia era dormir, comer, cagar e às vezes tomar banho. Sendo bem sincera, estava morrendo de medo de nunca mais conhecer alguém como você. Já tinha aceitado que nunca mais te teria, mas ainda tinha certeza de que você era do tipo perfeito para mim. Também me culpei, por ter feito o fiz com você e com a gente.

Eu me odiei. Quis arrancar minha pele e virar do avesso, estudar cada centímetro de mim para encontrar o erro, a tolice, que me fez te perder e queimá-la viva, igual a todo o resto de mim.

Mamãe ficou sabendo do ocorrido e veio me buscar para passar duas semanas em casa com minha família. Primeiro, ela brigou comigo pelo estado deplorável em que me encontrou. Depois, lavou minhas roupas e me obrigou a cuidar direito do resto da casa e me arrumar para sair. Coisa de mãe.

Na viagem até a casa dos meus pais, acabei contando tudo o que estava acontecendo para ela, que não demonstrou muita surpresa. Eu já te contei que minha mãe tem um jeito de terapeuta, e nesse momento eu vi isso com total clareza.

Você chorou, ela me perguntou. Foi então que eu parei para pensar que chorei muito pouco. Passou tanto tempo desde a última vez que te vi, e que não chorei. Me lembrei que você ficava fascinado em nunca ter visto minhas lágrimas. Só umas duas vezes, respondi.

Ela ficou surpresa e viu que a coisa era bem séria, eu quase nunca choro. Conversamos bastante dentro do carro, e foi ótimo descarregar tudo o que eu carregava em mais alguém. Depois de você, eu me tranquei dentro de mim mesma a sete chaves, com medo de mais alguém descobrir o quão sugadora de mentes eu era.

Minha família me acolheu muito bem, cuidaram de mim com carinho e confesso que te xingaram bastante.

Quando eu ressequi até o pó, e achei que tinha chegado no fim da linha, eles estavam ali para me mostrar que ainda tinha muita coisa pela frente. Você não era o mundo, nunca foi e nunca seria. E mesmo se fosse, eu não precisava orbitar ao seu redor. Eu ainda era jovem e iria me recuperar.

Foi entre aquele tipo de amor que eu percebi que o amor romântico é difícil, e que às vezes não funciona. Eu precisava cultivar os outros tipos de amor, e deveria começar por dentro.

(de)composiçãoWhere stories live. Discover now