Capítulo 9

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Luto. Sinônimo de dor, angústia e tristeza. Pensando bem, esses três sentimentos são incapazes de descrever a profundidade desse abismo. É o apagar da fogueira em uma floresta escura, é o secar da última gota d’água no deserto, é o último oxigênio absorvido pelos pulmões, o último bater de coração. A última gota de sangue do corpo, o último bater de asa em plenos ares. Muitas metáforas, nenhuma tão profunda quanto o vazio destrutivo que habita naquele quarto escuro.

Spency estava jogando em sua cama desarrumada, desajeitado e segurando um lençol rasgado, como sua alegria. Em sua mente, mágoa e rancor latejavam, em seus olhos, lágrimas caóticas rastejavam. Nas memórias, a imagem vívida de sua mãe naquela maca na sala de autópsias. Outra gota d'água escorreu nos córregos do seu rosto.

O sol da primavera brilhava lá fora no segundo dia da estação, porém não iluminava a escuridão do luto aqui dentro. Luto. A eterna luta para superar o insuperável e suportar o insuportável. Seu pai, sua mãe e seu melhor amigo, o que mais poderiam tirar dele além de sua vida? Torcia que o fizessem o quanto antes.

Talvez esse seja mesmo o sentido da palavra “luto”: lutar. Sabotando sua importância, se esquivava da memória desenterrada sobre sua infância, onde um membro das Trevas tentou matá-lo e lhe causou uma cicatriz, tendo ele causado danos ainda piores ao inimigo. Também matou três soldados inexplicavelmente quando seu corpo esquentou, e realmente as palavras de Júdith começavam a fazer sentido: “tiraram de você tudo o que tinha, pois sabem que assim como nas profecias, perderão tudo”. Senão isso, o que mais?

Filho do primordial Kylan e da bruxa Alzádia Zulter, o próprio último herdeiro citado nas profecias. Pura loucura. Porém, e se, ainda que as chances sejam mínimas, ele possa se vingar? Derramar sangue dos desgraçados que lhe tiraram tudo o que mais lhe importava? Seria possível? Bom, caso Júdith seja de fato a reencarnação da Suprema Bruxa, uma primordial confirma que sim. Isso não é pouca coisa.

Permaneceu quieto, extasiado, olhando através de uma janela para uma borboleta que voava levemente.

Nada. Spency não tem mais nada que o importe. Nem mesmo a sua vida. E é justamente por isso que vale tentar. Foda-se caso dê uma de maluco e tente enfrenter Holter e acabe completamente esfaqueado, do que isso importaria? Sua alma já estava perfurada o suficiente. Falhar pode até ser sinônimo de fracasso, porém também é a prova de que tentou. Entre isso e a eterna dúvida de que as coisas poderiam ser diferentes, ele já possuía uma resposta.

Limpou seus olhos e pegou um papel amassado de seu bolso, o esticando pelas pontas e tornando legível. 

"Extremo-oeste de Hutbus Island, onde o The Pink River se divide em dois e o curso esquerdo deságua no oceano. Atravesse o rio para a direita, sentido castelo, seguindo em frente e posteriormente adentrando a floresta. Mantenha a atenção, há uma vasta quantidade de armadilhas no caminho, quanto mais dessas arapucas forem localizadas, mais terá certeza que está no caminho certo. Logo chegará a uma casa de madeira abandonada. Boa sorte." 

Hum, parece que aquele velho já sabia que Spency recusaria o convite numa primeira ocasião e depois voltaria atrás. Sábio mesmo.

Mal se deu conta e já estava de pé, saindo da casa vazia sem olhar para nada de seu interior para que não surjam novas lembranças. Sabia que a caminhada seria longa, e realmente seria. Se bem entendeu, tem que sair do vilarejo e ir para o oeste, passando pelo vilarejo Cinco onde todo esse inferno na sua vida começou, em seguida chegando ao The Pink River e usando seu curso para guiá-lo ao extremo-oeste. 

Andou muito, muito mesmo, suas pernas já formigavam. Acabou de passar pelo vilarejo vizinho, relembrando de Soulk e o que aconteceu com a senhora Munich, o que lhe trouxe fúria. No entanto, aquela figura encapuzada com máscara de leão equilibrou os sentimentos, trazendo a ele o medo. A qualquer momento, um ser das Trevas poderia estar a espreita e atacá-lo, e pior ainda se forem a porra daqueles lagartos.

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