no meio da história, uma vírgula, uma breve vírgula

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Boneca de piche e pano, — começou Vovó, — havia naquelas redondezas um esperto macaco que andava a roubar as bananas. Catava-as todas uma por uma, e as vezes nem esperava madurar. Com todo aquele prejuízo que o dono do sítio, onde as bananeiras estavam plantadas tomou, tratou logo de iniciar uma série de armadilhas, às quais o esperto mono escapava facilmente. Parece que o espertinho tirava-lhe sarro, zombando. Foi aí então que o fidalgo formulou um plano, capaz de livrá-lo do assaltante: construiu, na beira dum rio, uma linda boneca feita de pano e piche, e pôs-se à espreita.
Não demorou nada e o símio dela se aproximou, todo galante. Falava-lhe, mas ela continuava muda. Num dava um pio! Assim, dizendo despedir-se, encosta-lhe uma mão que, instantaneamente, ficou grudada na boneca. E foi assim até que todos os membros ficaram presos e permanecendo assim pra sempre, juntos os dois.

— Pobrezinho do macaquinho! — Excalmei cheio de dó. — Ele só estava se alimentando..., — queixei-me ajeitando na poltrona. — Aposto que o vigário nem precisava daquele tanto de banana! Na certa sobraria um bucado pro coitado do macaco.

— Contava essa história o meu avô. Contava sempre. Contava quando era dia, contava quando era tarde e também quando era noite. Desconfio que seja a única que ela tenha conhecido... Ou pelo menos a única que sabia contar..., — falou entreolhando as horas, as horas nuas o tempo divagando. Rescostou-se então no sofá procurando conforto, num suspiro de meia satisfação. A cara fechou-se dura como um leque e como se adormecida numa vaga lembrança, vagou palavras: — Quando eu era mais jovem costumava ouvir da minha avó histórias assim... e ficava ela na beira da cama falando com aquela boca fina, toda enrugada, enquanto eu abraçava minha boneca... Eu gostava desta boneca. Gostava muito, se quer saber... Era feita de pano também. As vezes eu pedia tanto a Deus pra que ela falasse comigo.

— Que nem a Emília, vovó? — Perguntei. — Emília e narizinho eram melhores amigas, na história do Sítio, lembra? — Ergui os ombros caídos em sinal claro que animação.

— Mesmo sem falar se tornou minha melhor amiga... — Disse, ignorando totalmente a minha fala.

As primeiras sombras da noite desciam, debruando de preto um veu, primeiro róseo, depois violeta, depois cinza. Ia demorar amanhacer de novo. Os pássaros voavam doudejando para cá e para lá. O tartalar das asas, de longe podia-se ouvir. Dançou-me na mente uma imagem, a do de seguinte. A do amanhecer, mas a aurora já estava longe, correndo o mundo para só retornar sem ser muito pontual no dia seguinte quando o galo cantasse.

E o Galo cantou. Acordei com o dia atrasado, como costumava dizer papai. Olhei pela janela, fuxicando pra saber se acontecia alguma coisa interessamte lá fora, e vi que Epaminondas tinha estacionado sua carroça velha lá na frente do estábulo. Desci correndo, atiçando as galinhas e pondo em prantos os gansos.

— Forge daí, menino! — Ordenou vindo em minha direção, sacudindo o pano de prato, segurando as ceroulas. — Deixa em paz os meus gansos! Menino levado, — vociferou.

Notei que um grande pacote embrulhado estava entrando pela sala. Era carregado por Epaminondas e um outro jeca que vivia plantando bananeiras e trabalhava descascando batatas na cozinha da família Abreu, lá na sede. Tinha um jeito tão desengonçado e gozado e caí na risada vendo-o labutar para carregar o pacote. Às vezes acabava chocando-se contra o umbral, nas quinas e dava um grito. Epaminondas dava-lhe uma bicuda na bunda e num salto o sujeito logo de ajeitava.

— Que é aquilo que estão levando lá pra dentro vovó? — Perguntei já achando que era coisa pra mim. Quem sabe brinquedo.

— É um presente que ganhei de Magnólia, — de cara virada respondeu. Dei de ombros.

Me chatiei é claro. Afinal, fazia tempo que não ganhava nada. Agora era esperar o natal e ver se Papai Noel ia me trazer alguma coisa naquele ano. Sempre costumava me trazer algo legal. Só teve aquele ano que fui muito bagunceiro e aí não ganhei nada.

A manhã tornou-se uma longa tarde inflada que se tornou uma noite sem fundo amanhecendo já tardia por toda a fazenda. A outra, manhã, pressurosa de sol, lumiada, cheia d'empenho, e eu, agora entediado olhando vovó a fazer aquele bolo que tinha um cheiro formidável. Apenas as mãos pequenas, tão redondinhas, segurando o queixo, e os cotovelos sobre a toalha xadrez que cobria a mesa, segurando todo o resto do tronco. Se vovó caminhava pra um lado, meus olhos a acompanhavam, o mesmo acontecia se ia pra outro; pra frente e pra trazer, cá ou lá, sempre a seguindo: perseguidores, brilhantes e duros perseguidores pregados na cara, à cara de menino, e tudo não passava duma sem-vergonhice de uma criança esfomeada, desmantelada.

— Pequerrucho,— virou-se para mim —que faz olhando tanto?

— Pensando no bolo, — respondi entrelaçando as mãos, guardando-a por entre os joelhos, cruzados. — E a vovó? No que pensa?

—Em rãs, — respondeu surpreendendo-me. — Há muitos girinos na logoinha. Depois elas vêm e lambem os alfaces lá na horta, e aí não servem mais para comer... — Ensaiou um sorriso, mas logo recolheu-o nos lábios.

O bolo saiu do forno, esfumaçado. Com um garfo a velha tirou um pedaço e deu-lhe uma dentada. Soprava porque estava quente como o próprio inferno.

—  Sonhei uma vez que os girinos voavam. Nadavam pelos céus como nadam na beira do rio. — Dei uma beliscada no bolo. — Tinham asas coloridas e flutuavam, colecionando sorrisos, histórias, como se fossem do tempo borboletas, das horas os reflexos..., — uma mosca pousou crua na minha pele nua, relia ao toque. Os dedos do pé a brincar com a chinela. Arrepiei-me pressagiado à frescurazita da tarde.

— Tinham asas coloridas..., — parafraseou balbuciando. — Aquela boneca... tinha a vestidinho todo colorido, feito de retalhos. Retalhos de listras, retalhos de poá e vagas finas desenhadas... e era a minha única. Mas uma vez, uma prima que tinha muitas bonecas, veio do Sul, lá dos pampas e se tornou tão próxima da minha Maricota, mal de deixava tocar no que era meu. No começo, gostava muito dela, mas depois todo aquele amor e cuidado se transformaram numa claustrofóbica maldição para Maricota. Beijava-a, abraçava-a e depois mordia-a, arrancando-lhe pedaços inteiros no dentes amarelos. Abraçava-a, beijava-a e logo ficava com uma face embruxarada, cheia de ódio por não pertence-la e quis que de ninguém mais fosse. — Com a faça de serrinha, caída sobre a mesa, cortou uma fatia de bolo. Não comeu-a. Em ensaios segurava-a com a ponta dos dedos. Ainda estava muito quente, mas era como se ela não sentisse nada, além do que já estava sentido.
— De pirraça, — prosseguiu, — pegava a boneca e dava-lhe com a cara na parede, escarafunchava a boneca, bulia, beliscava e saia chutando-a come se fosse bola. Eu só fazia chorar ao ver minha relíquia, meu tesourinho sendo despedaçado bem na minha frente... E estrebuchava, olhava-me com aqueles olhos de botões, como se agonizasse e me pedisse socorro. Maldita Isabel! — Cerrou os punhos, amassando aquele pedaço de bolo cremoso nas mãos secas. Estava cheia de lembranças... Lembranças de ódio.

Principiavam a cair as primeiras sombras da noite. A lua deslizando amarela pelos céus, a coitadinha. As chaminés das casas fumegavam, anunciando que as famílias já estavam reunidas em torno da mesa do jantar, cheias de fome, e que as crianças puxavam com uma das mãos a cadeira junto ao prato, e com a outra depois de espreitar se a mãe estava observando, beliscavam antecipadamente algum petisco, às escondidas.

— Vai me contar uma história hoje? — Perguntei acanhando. Nunca a havia visto daquele jeito.

— Chega de histórias por hoje...

A Ursa e o LoboDove le storie prendono vita. Scoprilo ora