Névoa no Funeral

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   Sobrevivi ao incidente em Franco da Rocha; um evento bizarro que começou na salinha de um velório. O que vou relatar aconteceu há pouco mais de uma década, mas eu ainda me lembro, perfeitamente, do maldito cheiro de vela que avançava para dentro de minhas narinas; lembro de como meu corpo estremecia de pavor; e nas noites mais frias, quando o vento uiva sua nefasta sinfonia em minha janela, eu posso ouvir os gritos de desespero das pessoas que estavam naquele velório; e mais, na escuridão do meu quarto... Oh! Maldição! Ainda posso ouvir os gemidos dos seres infernais que vieram com a névoa naquele fatídico dia.

Estávamos no velório do Tio Afonso, e na salinha ao lado outro velório acontecia simultaneamente, e, pasmem, o corpo que estava sendo velado na outra sala era o que sobrou da amante do Tio Afonso. Eles mantinham um caso às escondidas, voltavam de um motel no meio da noite e sofreram um grave acidente de carro. O Tio Afonso lutou por sua vida até o hospital, mas não resistiu, já a sua amante, morreu no local, prensada por um carro-forte - nas palavras de alguns transeuntes, a visão de boa parte do seu corpo entre as ferragens era idêntico a um acervo de carne moída expelido pelo aço triturante de um açougue. Todavia, os responsáveis pelo manejo do corpo fizeram um ótimo trabalho antes de colocá-la no caixão, mantendo seu busto quase intacto, apesar do rosto parcialmente danificado, e a parte inferior de seu corpo, a mais agredida no acidente, exigiu um minucioso trabalho para que aquele quebra-cabeça de carne e osso fosse montado; e apesar da aparência disforme e esquelética que a amante se encontrava, puderam manter o caixão aberto durante o velório, cobrindo a deformidade inferior do corpo com lindas flores brancas.

A tristeza era visível no rosto de todos. A melancolia era quase palpável entre as quatro paredes do velório; o ar fúnebre, que nos cobria como um lençol, penetrando em nossa pele como um abraço depressivo, percorria o corredor que dava acesso ao lado de fora; e lá fora, a melancolia também se manifestava, na estreita rua de terra, permeada pelas lamentosas árvores secas do inverno, e também, no grande portão enferrujado que servia de pouso para alguns corvos. Do outro lado da rua de terra, rente a entrada do velório, se encontrava um muro repleto de lodo; muro esse que dividia, do lado de cá, as duas salinhas do velório, e do lado de lá, lápides, covas e jazigos. Aquele foi um dia triste para muitos. Dois velórios, duas famílias desoladas, duas vidas que se foram.

O carro fúnebre que trouxe o cadáver do meu tio e de sua amante estacionava novamente, com mais um defunto que, em breve, substituiria o lugar do meu Tio Afonso assim que seu velório acabasse. Carros e mais carros chegavam, trazendo os familiares do próximo morto que seria velado naquela salinha. Do lado de fora, uma família desconhecida para nós, compartilhando do mesmo sentimento lastimável, aguardavam enquanto nos despedimos do Tio Afonso, para que mais tarde, eles também pudessem se despedir de seu ente querido, agora falecido.

Não bastassem os dois velórios, mais o terceiro que se iniciaria em breve, da família que aguardava lá fora, recebemos notícias de que mais tarde o carro funerário partiria em busca de um novo morto; bem-afortunada era a Morte naquela fria tarde de domingo. Fomos notificados de que em quinze minutos o caixão do meu tio, e o de sua amante, deveria ser fechado para seguir caminho entre as lápides. Entre choros e lamentos, nos aproximamos do Tio Afonso para um último adeus, inclusive minha tia que, deixando o rancor de lado, despedia-se de seu infiel defunto com um beijo na testa, aos prantos. O mesmo acontecia no velório da defunta amante, na sala ao lado. Fui o último a me aproximar do caixão para me despedir daquele corpo enrijecido, de coloração de cera velha - deplorável livor mortis - mas fui interrompido, pois foi exatamente a partir daí que se iniciou os momentos mais aterrorizantes da minha vida.

Alguém invade a sala do velório; um homem barbudo, de olhos arregalados, semblante assustado, tentava dizer algo, mas faltava fôlego para se expressar. Com a mão no peito e esforçando-se para respirar, ele finalmente conseguiu pronunciar algumas palavras daquela boca seca e esbranquiçada. Dizia ele, já rouco, que "Eles" estavam se aproximando. Tentamos acalmar aquele homem e pedimos para que ele se explicasse melhor, mas, a única coisa que ele fazia era apontar o dedo trêmulo para o lado de fora, dizendo que "Eles" estavam se aproximando, e que deveríamos fazer silêncio. Fui buscar água para o homem, mas logo retornei, quando vi as pessoas que estavam do lado de fora, esperando para velar o seu defunto, entrando ligeiramente pela estreita porta do velório, todos amontoados e desesperados. A salinha onde velávamos Tio Afonso agora estava lotada; eu, minha família, a da amante e as pessoas que estavam lá fora dividiam o mesmo espaço funesto.

13 Contos FúnebresWhere stories live. Discover now