O Pântano e o Corvo

2 0 0
                                    

   É difícil dizer o que eu mais temia naquele horrendo dia: talvez a guerra, responsável pelas dezenas de corpos destroçados ao meu redor; talvez o pântano, frio e pacato como um cadáver, evaporando o gélido aroma de morte iminente; talvez o medo de morrer, por um tiro, uma explosão, gangrena; ou talvez fosse o corvo, maldita ave de crocito ensurdecedor, que movimentava a escuridão de penas feito uma sombra do além, destacando-se ao longe, na nébula sinistra. Diabólica ave de olhos infernais!

O combate ceifou muitas vidas, principalmente daqueles que lutaram ao meu lado. A cada minuto a ausência de um companheiro de guerra se fazia presente; bastava um único piscar de olhos para que a próxima rodada de cerveja fosse descartada — "Descansem em paz, amigos!" — Avançávamos em meio às explosões, em dupla, eu e o futuro defunto que na noite anterior cantava para nós uma linda canção, escrita por ele mesmo, dedicada à sua filha, música essa que, ao retornar para seu lar, seria entregue de suas cordas vocais para o coração da menina; ah, como ele ansiava o brilho nos olhos da pequena; só que hoje, durante o alvorecer, de sua boca a linda voz não se ouvia mais, e sim, gritos de desespero de alguém convencido de que cantar não iria jamais.

Guerra é automutilação; avançamos para atacar e para morrer; como poderia um dos dois lados sair vitorioso em meio a tantas perdas? Eu sobrevivi. Por covardia? Não me importo. Uma voz em minha cabeça gritava a cada nova explosão — "Fuja! Salve-se!" — e eu simplesmente obedeci e fugi. Por sorte não fui baleado durante a corrida; marchei veloz direto ao pântano, lugar onde eu jamais queria ter ido. Mergulhei sem hesitar, e ali fiquei, imerso até a virilha, acreditando que o combate não se ampliaria até aquele local onde uma sútil névoa, de aspecto tenebroso, pairava sobre a água suja e fria. Me escondi debaixo de alguns galhos e troncos derrubados à margem do lago, e ali permaneci, aguardando o cessar dos bombardeios fatais.

Após algumas horas a fadiga me fez adormecer, enroscado nos galhos, e quando acordei, o silêncio era vasto. O combate chegou ao fim - pelo menos por hoje; pensei - e ao tentar me desprender, com dificuldade, do emaranhado de galhos pontiagudos, uma ferida se abriu em meu ombro, rasgando minha carne até o osso, despejando um punhado de sangue no lodo. Forcei meus pesados passos no pútrido lago e, enquanto caminhava, molhando-me por inteiro, notei que aquele pântano já foi uma zona de combate. Alguns metros à frente, avistei corpos de soldados boiando; alguns deles ainda inteiros, enquanto a maioria eu mal conseguia olhar; como pode o corpo humano se transformar num desastre desse porte? Somente a Morte poderia admirar tão asquerosa arte. Enquanto a água espumava, a cada passo tortuoso que eu dava dentro do pântano, rente à margem, percebi que algo estava me seguindo. Eu tive a estranha sensação de que um ser maligno me observava, não de um único ponto, mas de todos os locais.

Lá longe surgiu, um formato escuro, destacando-se na névoa, era o corvo tenebroso vindo em minha direção, de galho em galho, de tronco em tronco. Ele saltitava nos troncos das árvores, boiando no pântano de lodo, e nos troncos dos soldados mortos, mutilados por ferimentos mortais.

Revoando de defunto em defunto

O corvo de mim se aproximou

E da penumbra de seu bico

Meu nome ressoou

Como poderia maldita ave saber o meu nome? Como pode tal criatura ter o dom de falar? Até os dias de hoje não encontrei uma resposta, mas eu sei, que naquele dia, o meu nome a ave ecoou, num tom horrível e esquisito, acompanhado de atrozes crocito sepulcrais.

Diante de mim um corpo boiava, servindo sua barriga inchada de pouso para o corvo sapatear seus pequenos pés decrépitos. A criatura alada de olhos vermelhos operava uma dancinha de morte na barriga do defunto, e eu não suportava mais seus olhos satânicos encarando-me. Acelerei o passo, ainda dentro d'água, com dificuldade, quase tropeçando e apoiando a mão em alguns corpos, ansiando ficar longe da ave das trevas. Vez ou outra eu olhava de soslaio e me apavorava, pois o corvo me seguia, e por mais que eu quisesse ficar bem longe da criatura, eu precisei parar, ao notar alguns soldados inimigos transitando entre as árvores, não muito longe da margem do pântano onde eu estava. Meia dúzia deles vinham em minha direção; fingi-me de morto, já que enfrentá-los, eu não aguentava mais.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: May 24, 2023 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

13 Contos FúnebresWhere stories live. Discover now