Sem tempo para o dois

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Michael se sentiu sob uma pressão enorme. Tinha pouquíssimo tempo para pensar, um imenso monstro nevado atrás de si e um abismo enorme à sua frente — além de uma cabeça de Homo erectus para tentar resolver aquilo tudo. Se Millie não morresse sufocada na neve, ela morreria pela queda no precipício. E Michael não podia deixar de jeito nenhum aquilo acontecer.

"Espera. Mas e se, ao invés de nós cairmos no precipício, só a neve caísse?"

Um estalo de ideia maravilhoso despertou seus neurônios sem vida. Ok, a ideia era um pouquinho arriscada demais, mas foi a única coisa que ele conseguiu pensar. Então era melhor morrer tentando do que morrer sem fazer nada.

Michael, enquanto corria, tirou a mochila das costas e pegou as mesmas cordas que usou para descer a tirolesa anterior. Assim como fez na última vez, as dobrou ao meio para deixá-las mais robustas.

— Você confia em mim? — se virou para a amiga.

— O que diabos você tá pensando em fazer?! — Millie sabia que por trás daquela frase havia alguma ideia muito absurda.

— Sobe nas minhas costas — parou de correr para deixar a parceira fazer aquilo.

A humana respondeu com uma cara de confusão.

— Vamos, eu não tenho tempo pra explicar!

Millie, ainda que sem entender, montou nas costas dele. O morto-vivo continuou correndo com suas perninhas fracas de modo desengonçado e, quando percebeu que o precipício estava bem próximo, avisou:

— No três ok?

— É o quê?! Não me diga que você vai...

— Confia em mim, vai dar certo — interrompeu. Não queria ouvir as paranoias dela, sua cabeça já estava cheia demais (ou vazia demais).

Michael abriu a corda, preparado para passar no fio da tirolesa.

— Um...

— Michael, não! Não vai dar tempo! — arranhou o peitoral dele, tentando detê-lo, enquanto olhava para trás.

Ele se virou para trás só mais uma vez para checar a distância da avalanche. Todo o ambiente estava tomado pela fumaça branca. Não havia tempo para contar o número dois.

— Três — engoliu seco.

Saltou do chão, colocou rapidamente a corda sobre o fio da tirolesa e segurou as pontas como se sua vida dependesse disso (e, adivinha só, realmente dependia).

O peso do corpo de Millie deu um baque de sessenta quilos quase instantâneo nos braços de Michael, mas ele foi forte o suficiente para não deixar suas mãos escorregarem pela corda. A ponta de seus dedos estava amarelada e as palmas das mãos já estavam com a marca de suas unhas roídas.

A avalanche veio como ondas furiosas de um oceano tentando alcançar os sobreviventes, mas o precipício não deixou. O montante de gelo e pedaços de pedras foi desaguando no despenhadeiro. A força da neve, no entanto, foi capaz de gerar um vento fortíssimo, que impulsionou Michael e Millie na descida da tirolesa. A névoa gelada e densa se envolveu neles, deixando tudo embaçado.

Millie, que estava praticamente furando o peitoral de Michael de tão forte que o segurava, olhou para trás para ver se a avalanche ainda estava os seguindo. E quando viu que ela estava caindo no precipício, deu um grito de alegria que quase estourou os tímpanos de Michael:

— Conseguimos!

O morto-vivo iria comemorar se não fosse por um som que lhe preocupou. Seus braços. Sentiu a pele frágil de seus ombros rasgando. Como ele já esperava, seu peso e o peso de Millie poderiam fazer tanta força sobre seus músculos apodrecidos a ponto de rompê-los. E era isso mesmo que estava acontecendo. Michael até podia ser forte, mas seu maldito corpo de zumbi não ajudava. "Segura aí, falta pouco pra a gente chegar lá..." pediu para seus braços terem paciência.

Enfim, após alguns rápidos segundos de pura tensão, a terra firme finalmente havia chegado. Michael soltou a corda na mesma hora em que o fio da tirolesa chegou ao fim, fazendo com que ele e a parceira caíssem bruscamente no chão. Millie se levantou logo depois e ficou pulando de alegria:

— Conseguimos, conseguimos, conseguimos! — cantou.

Ela parou de fazer festa, afinal ainda estava cansa­díssima da correria. Desabou de cansaço no chão, tirou seu cantil da mochila e degustou a água fresquinha descendo por sua garganta seca.

Michael apalpou seus braços e sentiu que eles estavam se descolando de seu tronco, como se fossem dentes permanentes moles. Afastou o casaco e a camisa dos ombros para ver se a situação estava assim tão crítica:

Boa parte da linha que costurava seus braços com seus ombros estava se partindo, deixando uma fenda encarniçada e cheia de larvas bem feia entre eles. Se Michael fizesse muito esforço, era bem capaz de a linha se romper por completo.

"Quando voltarmos pra casa, eu conserto isso com agulha e linha" ele se tranquilizou.

"Casa?" repetiu para si mesmo, achando aquilo estranho. Foi aí que ele se deu conta do que havia acontecido.

Após o ApocalipseWhere stories live. Discover now