Almeida, amêndoas e chá de hibisco

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⚠️ AVISO DE GATILHO: Linguagem sexualmente explícita, cena NSFW explícita, talassofobia, mencão de abuso doméstico e agressão.
Prossiga com cuidado, colocarei sinalizações nas partes necessárias! ♡
>> Tenha uma boa leitura:)

Capítulo Dezoito: Almeida, amêndoas e chá de hibisco

"A gente tem um quarto sobrando. Espaço não é problema, Anna. Nem comida."
Ariadne suspirou ao celular dobrável de cor vinho. Passando a mão livre pelos próprios cabelos castanhos, comprimiu os lábios em uma linha preocupada que espelhava suas sobrancelhas franzidas.
"Se você mudar de ideia, sabe que pode vir 'pra cá. De verdade."
A jovem mãe repetiu suas palavras de conforto mais uma vez, então ficando em silêncio por alguns segundos. Ela voltou os olhos claros à porta da cozinha, quase flagrando o par de irmãos que espiavam pela fresta na madeira escura.
Já era tarde, seus pés descalços resfriavam contra o piso do lobby que ligava a sala, quartos e cozinha na antiga casa litorânea pertencente à avó dos gêmeos.
"Ele bateu no Gio. Com um cinto. Essa foi a gota d'água."
Ariadne explicou em voz baixa, olhos fixos na pia mal fechada, que pingava a cada meia dúzia de segundos.
"A fivela pegou na pele dele, vai ficar uma marca, e... Não só no sentido de uma cicatriz."
A moça grunhiu, sua voz embargada conforme lutava contra as lágrimas.
"Deus, se eu não tivesse demorado tanto, Anna. Os sinais eram tantos, e a cada briga eu... Eu via essa violência nele aumentar mil por cento."
Gaguejou, fungando para evitar que desabasse por completo.
"Grita comigo, agarra meu pulso e puxa o meu cabelo, mas não toca nos meus filhos. Sabe?"
Sua voz falhou. Ariadne estendeu a mão livre e fechou a torneira, engolindo com dificuldade por conta do choro incessante que queimava seus olhos e vias aéreas.
Gio e Lê se entreolharam através do escuro, os cabelos igualmente loiros refletindo a luz da lua como fios de prata cacheados.
"Pensa nisso. Por favor, eu não quero que você tenha que passar por algo parecido 'pra perceber."
Suplicou, os cachos castanhos grudando em suas bochechas úmidas.
"Pelo André, e por você. Pela sua consciência."
Finalizou, a voz levemente mais rouca. Ainda espiando pela fresta de luz que saía da cozinha, como creme transbordando de um copo cheio até a borda com café de baixa qualidade, Gio e Lê suspiraram em uníssono.
Possuíam completa consciência de que, apesar de terem momentaneamente escapado do horror vivido na casa de seu pai, André continuava em uma situação similar, do outro lado da Rua Cintilante.
Sozinho, a partir daquele dia.

Ainda assombrado pelo pingar irritante da pia, o choro dolorido de sua mãe e o olhar tristonho de Lê, Gio se afastou do irmão, subindo as escadas que levavam até o quarto dividido pelos dois com a rapidez de um camundongo assustado.
Ainda sentindo seus olhos arderem, desviou sua atenção para o céu estrelado que guardava ambas as camas por trás da moldura da janela, ocupando quase toda a parede. O orvalho ainda caía, e nenhuma nuvem atrapalhava o espetáculo noturno, indicando que o dia seguinte seria quente.
Gio ajoelhou-se sobre sua cama, escalando-a com o olhar fixo no azul escuro e borbulhante do céu lá fora. Estendendo uma das mãos para a janela, seus dedos foram submergidos pelo que agora lhe parecia uma substância viscosa e escura, que escorreu pelo seu braço e pingou no chão do quarto.
O menino cravou seus olhos no óleo azulado que penetrava cada fresta do piso de madeira, levantando o rosto à janela apenas com tempo o suficiente para prender a respiração quando foi engolido pela escuridão densa, úmida e pegajosa.
Não se desesperou, debateu, e nem muito menos tentou nadar.
Já conhecia aquele recorrente pesadelo.
No fundo daquele infinito azul, Gio manteve os olhos fechados, respirando normalmente mesmo que submergisse para cada vez mais longe do ar puro.
Outra vez, suspirou, e bolhas dançaram ao seu redor, rodopiando até a superfície.
Seus olhos se abriram conforme encostava um pé na areia, cercado pela escuridão. O outro pé firmou sua base antes que se permitisse sentar por alguns segundos.
"Outra vez, esse mesmo sonho."
Pensou, os cabelos tingidos flutuando e dançando toda vez que movia sua cabeça.
Gio respirou fundo e passou as mãos ossudas pelo próprio rosto úmido antes fechar os olhos com força, as palmas intensamente pressionadas contra estes até que sentisse náuseas.
Atordoado, sentou-se sobre a cama bagunçada de seu quarto. Tossiu, fungou e coçou seu queixo de modo irritado, expressão ainda chorosa.
"Inferno de pesadelo."
Grunhiu.
No espelho recostado contra a parede perto de seu armário de segunda mão, um movimento inusual chamou sua atenção. Gio se levantou, arrastando os pés até a própria reflexão e observou sua imagem mórbida.

Beijos na esquina da Rua CintilanteOnde histórias criam vida. Descubra agora