II - Evandro Quer Falar Comigo

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26 de Agosto de 2022

O cheiro da terra molhada em um dia de chuva após semanas secas e poeira é tão bom quanto comer um doce bem açucarado e logo depois tomar água gelada, refresca até a alma. As formigas de asas aparecem e se espalham por todo lado voando nas lâmpadas das casas e dos postes parecendo fadas fazendo alguma magia em volta de uma bola brilhante branca, controlo minha vontade de sair para fora e me sentar em meio ao gramado do quintal e sentir as pequenas gotas caírem em minha pele deslizando por mim e aos poucos me molhando por completo, mas sei que ao fazer isso pegarei um resfriado que me derrubará.

São 4 da manhã e eu não consigo dormir, não consigo parar de pensar no que aconteceu ontem e fico pensando se tentar entrar em contato com Evandro e explicar o que aconteceu não seria melhor do que ficar aqui de pernas para o ar com isso martelando na minha mente. Anos atrás éramos vizinhos e brincávamos de corrida na frente de sua casa, me mudei para outra escola e quando voltei 4 meses atrás ele nem sequer olhava na minha cara e eu nem sabia o que havia acontecido para ele me tratar assim, foi então que também comecei a agir dessa forma com ele. Meu notebook já estava aberto em uma das minhas redes sociais e agora só bastava tentar encontrar Evandro, como a minha memória era horrível e ja haviam passados 10 anos que não via meu antigo amigo eu nem lembrava mais seu sobrenome. Por uma hora me concentrei em achar e quando já estava em meu pico de estresse prestes a desistir consegui o encontrar.

Giro na cadeira diversas vezes enquanto penso no que seria melhor mandar, e não faço a menor ideia de como fazer isso sem parecer que o tarado que o agarrou no banheiro está procurando ele para conversar. Digito um oi e saio da página rapidamente desligo o notebook e vou para fora do quarto como um fugitivo de uma maneira que em instantes Evandro fosse sair da tela e rir da minha cara ou me bater, uma hora dessas aposto que ele já deve estar em sono profundo coisa que eu também deveria estar. Esquento um copo de leite com açúcar enquanto molho minhas plantas na cozinha, gosto de plantas e em cada cômodo da casa tem alguma, sempre que alguém aparece para fazer uma visita digo que elas são da minha mãe, afinal, as pessoas mais velhas não estão prontos ou simplesmente não querem aceitar que meninos podem adorar plantas e não serem gays ou como um tiozão babaca se referiu a mim dias atrás "bichinha".

Catarina passa desfilando entre minhas pernas cheia de interesse em querer saber o que eu estava fazendo de bom, passo a mão por sua pelagem tricolor macia e pelos voam lentamente pelo ar. Tudo estava muito silencioso e calmo nem sequer um barulho ou alguma movimentação na rua, fecho uma das cortinas que minha mãe esqueceu aberta me sinto como se um humano morto vivo fosse aparecer a qualquer momento e me olhar pela janela, só de pensar imediantamente minhas pernas tremem feito vara verde. Lavo o copo e vou novamente para o meu quarto, me lembro que já havia terminado de ler um livro e precisava pesquisar mais algum para passar meu tempo ler me tirava da realidade e me tranquilizava, no mesmo instante em que tomo meu celular em mãos um barulho de notifição me faz gelar.

Torci para que fosse uma simples notifição de que as galinhas da fazendinha estavam com fome ou que o leite ja estava pronto pra tirar, ou o app de inglês quase me ameaçando a voltar estudar. O oi? Em destaque na tela me fez arrepiar, sou o Procópio, não sei nem se você se lembra de mim ainda, mas, cara foi mal ter pego em suas pernas eu realmente não pensei nisso de que poderia ter alguém ali . Por longos vintes minutos Evandro me respondeu de forma um tanta estranha dizendo que não havia problemas. Cadê a surra? Cadê o xingo? Pode isso Arnaldo? Aliviado em que não teria minha invisibilidade estragada por esse ocorrido e de que ninguém além de Evandro saberia que eu era o tal tarado do banheiro consegui dormir.

Apesar de estar chovendo no outro dia incrivelmente acordei com um calor infernal levantei da cama e me pareceu que iria cair de volta com a fraqueza que me atingiu, minha pressão foi ao núcleo da terra e voltou em segundos. Eu suava tanto que no lençol a marca do meu corpo parecia a de um desenho no chão de um morto feito pela perícia em uma cena de crime, o travesseiro estava inundado e não dava para distinguir se era baba ou suor. No relógio marcava 6 horas e pela primeira vez acordei antes que minha mãe espancasse a porta e entrasse abrindo as janelas e puxando meu cobertor quase me jogando contra o chão, embora houve um dia em que não precisou nem que me jogasse porque eu já estava dormindo no chão bem embaixo da cama lembro muito bem que quando acordei minha mãe estava desesperada na porta ligando para o meu pai dizendo que eu havia sumido e que ela tinha medo que eu tivesse me envolvido com drogados, quando saí de baixo da cama levei uns tapas sem ter culpa de nada.

Um banho gelado era tudo que eu precisava, dormir também mas como não tinha mais tempo para isso ignorei. A água gelada me fez querer não sair mais, e logo eu começo a xingar mentalmente alguém que me insultou anos atrás e eu não disse nada, faço coisas assim todo dia quando me lembro de alguma situação que não reagi e me arrependi, será que isso é normal? Me sinto um doido varrido. Minha mãe entra no quarto e me encontra sentado na cama pronto e com a mochila jogada perto dos meus pés ela estranha a situação de imediato mas depois me diz para descer que ela iria arrumar meu quarto que estava um fuzuê já que eu não me importava e que ela não queria ratos andando pela casa.

"Se tiver ratos a Catarina come ué"

"Ah come, e depois vomita tudo e quem vai limpar sou eu né"

Sorrio pelo o que ela disse e vou tomar o café da manhã. O pequeno furacão deixou vários lápis espalhados pelo chão e por sorte eu reparei antes que escorregasse e beijasse o chão. Emilía tem 4 anos e foi adotada quando tinha poucos meses de vida, foi deixada em baixo de uma bananeira na frente de um orfanato e desde então nunca se soube quem foi que a deixou la e porque.

"Ah dessa vez não deu celto meu celcado"

"Eu falei pra você que a Catarina iria derrubar"

"A Catalina é uma folgada"

Próximo as 7 horas da manhã eu ja não me aguentava mais em pé e logo na primeira aula quando cheguei dormi na mesa, um cutucão na minha costela me fez acordar em um pulo assustado, a velha coroca me olhava com seu óculos de onça na ponta do nariz e me aguardava em silêncio dizer algo que eu não sabia o que teria de ser, suas roupas estranhas balançavam com o vento que entrava impaciente pela janela e que levava as folhas soltas de quem estivesse distraído. A camiseta florida tinha umas flores desenhadas tão tortas que parecia que o seu neto havia as desenhado e ela fez uma estampa daquilo. Risinhos no fundo da sala a fazem tirar a sua atenção de mim e olhar para onde ela achava que os sons vinham, suspirei aliviado mas o ar nem saiu direito e ja prendi a respiração novamente quando ela voltou sua atenção para mim com seus olhos grandes e pretos de pálpebras caídas.

"Vamos, diga algo !"

"Algo"

Sem nem raciocinar direiro a respondi, fui pego pelo braço e levado para fora da sala, ja nem sabia para onde ela me levava me sentia andando em nuvens tudo parecia tão monótono e calmo até que derrepente um tapa na mesa me fez acordar. A diretora olhava atenta enquanto a dona Mocréia se descabelava e gesticulava feito uma doida dizendo o quanto fui sem educação com ela, da forma que ela dizia parecia que eu havia ameaçado bater nela.

"Ok dona Carmen irei ver o melhor a se fazer nesse caso"

A porta se fecha e Maria Rita sorri para mim, ela concorda com todos que dona Mocréia passa dos limites embora eu admita que também a cutuquei quando retruquei.

"Vá para sua sala e não a retruque. Ei olhe para mim, o que está acontecendo Procópio?"

"Só não dormi direito"

Ela acena que entendeu mesmo sabendo que aquilo seria uma desculpa esfarrapada em partes. Olhando para baixo eu caminho pelo corredor entediante todo branco como o de um hospício, acredito que umas plantinhas e uma arte nessas paredes tornaria isto muito mais convidativo. Meu ombro dói ao se chocar contra alguém que passou quase correndo e aparentemente tambem olhava para o chão assim como eu, Evandro parecia estar nervoso e quando me viu estranhamente mudou seu olhar como se tivesse se esvaido todo o seu desespero.

"Preciso falar com você urgente, na saída"

Sem entender muito o que havia acontecido continuo andando de volta até a sala de aula e agradeço aos céus pelo sinal ter batido e dona Mocréia não ter me visto.

Procópio Não Gosta Desse NomeWhere stories live. Discover now