Prólogo

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Desde que me lembro, o quarto de Blake LeBlanc é meu lugar preferido no mundo.

Agora, quando caminho em passos lentos, quase arrastados, pelo ambiente bagunçado escutando o som da chuva lá fora, sinto meu coração apertado de uma dor que não sabia que existia.

É a última vez que deixo meus olhos descansarem na estante cheia de livros que eu mesma coloquei ali. Blake não leu nenhum, mas não parei de trazê-los.

Começou com "O Grúfalo", quando tínhamos seis anos e aprendi a ler. Ainda me recordo com um sorriso nostálgico, que desde o momento em que eu e meu pai saímos da livraria com meu primeiro livro – ou o primeiro que escolhi porque agora ele não precisava mais ler pra mim, eu era uma menina grande e podia ler meus próprios livros – só pensava em mostrá-lo para Blake.

Assim que cheguei em casa, e papai foi para o escritório trabalhar nos seus próprios livros, corri pelo espaço que separava minha casa da casa dos LeBlanc e escalei até o quarto de Blake, louca para ler o livro pra ele.

Só que ele não viu graça nenhuma quando interrompi seu jogo do minecraft, e quando insisti em ficar lendo mesmo assim, ele pegou o livro da minha mão e rasgou uma página.

Nós dois ficamos olhando para aquele massacre, eu com o coração partido e Blake parecendo não acreditar no que foi capaz.

Meus lábios começaram a tremer e daí para o choro sentido foi um pulo.

E como sempre, Blake percebeu que tinha ido longe demais e começou a balbuciar que ia consertar o livro, que era melhor parar de chorar antes que a mãe dele entrasse no quarto e o deixasse de castigo por mais uma vez ter me chateado.

Agora estendo a mão e pego aquele mesmo livro e o abro na página rasgada e colada com durex muito malfeito e sorrio, meus lábios tremendo como naquele dia e se transformando num choro sem que consiga conter.

Blake me fez chorar tantas vezes que eu nem me lembrava, mas agora não era ele o culpado. E ainda assim tinha a ver com ele.

Sempre tinha.

Engulo o nó na minha garganta deixando os dedos percorrerem as lombadas dos livros que foram evoluindo conforme ia ficando mais velha. Agora são nove anos desde o primeiro "O Grúfalo". Nove anos que eu enchia a estante de Blake, antes cheia de bonequinhos de super-herói, medalhas de sua turma de natação e judô e o que mais seus pais inventassem que ele tinha que fazer para extravasar seu lado agressivo, com meus livros.

Todos eles estavam ali, não na minha estante. Acho que foi há uns seis meses que Blake me perguntou porque diabos eu não mantinha meus livros pra mim e respondi que sentia que o quarto dele era mais meu quarto do que o quarto da minha casa. E era verdade. Não lembro a primeira vez em que subi por sua janela, mesmo quando ele dizia que não gostava de mim, porque eu era uma menina, não entendia e não gostava das brincadeiras de garotos.

Mas eu gostava do Blake.

O que era um total mistério, já que desde bebês, o Blake era um serzinho difícil e arredio. Um menininho mal-humorado, teimoso e cheio de fúria quando contrariado. Ao contrário de mim, que sempre fui uma criança dócil e alegre. Nossos pais amavam explanar um vídeo nosso, com uns dois anos de idade, em que Blake chora depois de levar uma bronca por ter puxado meu cabelo e eu o abraço para tentar acalmá-lo. Porém, Blake me empurra mal-humorado e eu fico desolada, e segundos depois ele se vira e me abraça, como se tivesse se arrependido.

Eu não me recordo dessa época, óbvio, mas eu e meu pai nos mudamos para a casa vizinha aos LeBlanc há 14 anos, quando eu tinha pouco mais de um ano. Logo o simpático casal nos acolheu na sua casa, convidando meu pai para jantares e os famosos churrascos com vizinhos. Também não me lembro se boa parte da vizinhança de Seattle torceu o nariz com aquela "novidade moderna", de um pai solteiro gay com uma filha sem mãe. Mas papai sempre dizia que foi o acolhimento da Célia e Clay LeBlanc que fizeram com que todos nos aceitassem na vizinhança.

Toda Sua FúriaWhere stories live. Discover now