A manhã começou agradável como fazer trilha com meia molhada. Ou seja, podia ter sido melhor.
— Estou vendo duas pessoas — escutou a voz mal-humorada de Sánchez resmungar ao redor de um palito de dente. Estavam os três no convés coberto, e a alvorada surgia tímida no horizonte.
— Acabou o café? — Saltwell o ignorou, sussurrando para outro homem sentado a seu lado mexendo em um dos computadores de bordo.
Sem tirar os olhos sonolentos do painel esverdeado, o engenheiro tateou uma garrafa térmica ao lado. Quando a entregou, ajeitou os óculos de grau que refletiam a tela e respondeu ao navegador.
— Não vejo nada aqui. Certeza de que são pessoas?
— Sereias é que não são — respondeu o mais velho.
Desrosqueando a tampa da garrafa, Saltwell bufa uma risada, mas o sorriso se desfaz assim que sua língua prova o amargor fermentado do café.
— Credo, quem fez isso? - Enojou.
— Você — Yami respondeu, teclando algo no computador à sua frente —, ontem a tarde.
O mais novo balançou a cabeça, profundamente decepcionado que ninguém pensou em preparar outra térmica desde então. Se levantou do chão e espreguiçou. A corrente de identificação em seu peito pulou para fora da camiseta azul, e ele a cobriu uma vez mais.
— Paiol — Se virou ao escutar o apelido. Sánchez segurava um binóculo no ar, gesticulando para ele se aproximar. Com um dedo grosso, calejado de puxar corda áspera (como todo bom marinheiro), apontou. - Você que tem olho pra essas coisas, vê se aquilo ali é humano ou não.
O jovem coçou os olhos pesados, caminhando devagar até a beirada do parapeito. O cochilo de poucos minutos atrás parecia ter surtido o efeito contrário que desejava.
Levantou o binóculo para a direção apontada e tentou focar. Escutou Yami abafar uma risada e sussurrar "essas coisas" como se achasse cômico. Sánchez franziu uma das sobrancelhas grossas, cor de palha queimada, movendo o palito de um lado da boca para o outro.
— Tá rindo do quê, Farolete? Não foi tu que disse que não viu nada? — Boquejou irritado.
Yami rolou os olhos claros ao escutar o apelido. Virou-se no mesmo instante, apoiando o braço na caixa de madeira que usava como mesa, e respondendo.
— Você navega a cinco anos, Sánchez. — Ele abriu um sorriso divertido no canto da boca. — Já devia saber como chamá-los.
Saltwell certamente também via algo ali. Ruminou, inclinando a cabeça para o lado. Ele abaixou o binóculo por um instante para esfregar os olhos mais uma vez, e então voltou a atenção para a estrutura em alto-mar: um trapiche sub náutico.
— Não são humanos — respondeu, escutando Yami se vangloriar pelo seu sistema operacional nunca errar —, mas tampouco parecem Abissais. Pelo menos não os que costumamos ver nas bordas.
Sánchez se endireitou, apoiando-se na beirada da cabine ao seu lado para olhar o horizonte mais uma vez. Yami apareceu logo em seguida, visivelmente curioso. Saltwell entregou os binóculos ao engenheiro, e se virou para as escadas laterais.
— Você vai lá? — Sánchez perguntou, ainda que não esboçasse nenhuma surpresa.
— É para isso que eu venho, não é? — Deu de ombros. Por fim, abriu um sorriso zombeteiro, engrossando a voz ao enfatizar. — Porque eu "tenho olho para essas coisas".
O navegador estalou com a língua nos dentes, balançando uma mão e mandando-o desaparecer de uma vez. Descendo as escadas, escutou, ao fundo, Sánchez questionar se de fato não tinha nenhum café e Yami respondeu que tinha escondido a térmica fresca. Saltwell pasmou com tamanha traição. Quase voltou ao convés, mas apenas entortou a boca e continuou.
![](https://img.wattpad.com/cover/361231926-288-k89337.jpg)
YOU ARE READING
✦ Os Cristais de Marébyss
AdventureDurante uma travessia pelo oceano atlântico, Paiol encontra uma dupla inusitada de Abissais alegando serem turistas - ao oferecê-los ajuda, seu papel como diplomata se torna algo terrivelmente perigoso. -✦- A exploração de Marébyss é real. Meio-Abi...