Capítulo 1 - Abissais

21 3 10
                                    


A manhã começou agradável como fazer trilha com meia molhada. Ou seja, podia ter sido melhor.

— Estou vendo duas pessoas — escutou a voz mal-humorada de Sánchez resmungar ao redor de um palito de dente. Estavam os três no convés coberto, e a alvorada surgia tímida no horizonte.

— Acabou o café? — Saltwell o ignorou, sussurrando para outro homem sentado a seu lado mexendo em um dos computadores de bordo.

Sem tirar os olhos sonolentos do painel esverdeado, o engenheiro tateou uma garrafa térmica ao lado. Quando a entregou, ajeitou os óculos de grau que refletiam a tela e respondeu ao navegador.

— Não vejo nada aqui. Certeza de que são pessoas?

— Sereias é que não são — respondeu o mais velho.

Desrosqueando a tampa da garrafa, Saltwell bufa uma risada, mas o sorriso se desfaz assim que sua língua prova o amargor fermentado do café.

Credo, quem fez isso? - Enojou.

— Você — Yami respondeu, teclando algo no computador à sua frente —, ontem a tarde.

O mais novo balançou a cabeça, profundamente decepcionado que ninguém pensou em preparar outra térmica desde então. Se levantou do chão e espreguiçou. A corrente de identificação em seu peito pulou para fora da camiseta azul, e ele a cobriu uma vez mais.

— Paiol — Se virou ao escutar o apelido. Sánchez segurava um binóculo no ar, gesticulando para ele se aproximar. Com um dedo grosso, calejado de puxar corda áspera (como todo bom marinheiro), apontou. - Você que tem olho pra essas coisas, vê se aquilo ali é humano ou não.

O jovem coçou os olhos pesados, caminhando devagar até a beirada do parapeito. O cochilo de poucos minutos atrás parecia ter surtido o efeito contrário que desejava.

Levantou o binóculo para a direção apontada e tentou focar. Escutou Yami abafar uma risada e sussurrar "essas coisas" como se achasse cômico. Sánchez franziu uma das sobrancelhas grossas, cor de palha queimada, movendo o palito de um lado da boca para o outro.

— Tá rindo do quê, Farolete? Não foi tu que disse que não viu nada? — Boquejou irritado.

Yami rolou os olhos claros ao escutar o apelido. Virou-se no mesmo instante, apoiando o braço na caixa de madeira que usava como mesa, e respondendo.

— Você navega a cinco anos, Sánchez. — Ele abriu um sorriso divertido no canto da boca. — Já devia saber como chamá-los.

Saltwell certamente também via algo ali. Ruminou, inclinando a cabeça para o lado. Ele abaixou o binóculo por um instante para esfregar os olhos mais uma vez, e então voltou a atenção para a estrutura em alto-mar: um trapiche sub náutico.

— Não são humanos — respondeu, escutando Yami se vangloriar pelo seu sistema operacional nunca errar —, mas tampouco parecem Abissais. Pelo menos não os que costumamos ver nas bordas.

Sánchez se endireitou, apoiando-se na beirada da cabine ao seu lado para olhar o horizonte mais uma vez. Yami apareceu logo em seguida, visivelmente curioso. Saltwell entregou os binóculos ao engenheiro, e se virou para as escadas laterais.

— Você vai lá? — Sánchez perguntou, ainda que não esboçasse nenhuma surpresa.

— É para isso que eu venho, não é? — Deu de ombros. Por fim, abriu um sorriso zombeteiro, engrossando a voz ao enfatizar. — Porque eu "tenho olho para essas coisas".

O navegador estalou com a língua nos dentes, balançando uma mão e mandando-o desaparecer de uma vez. Descendo as escadas, escutou, ao fundo, Sánchez questionar se de fato não tinha nenhum café e Yami respondeu que tinha escondido a térmica fresca. Saltwell pasmou com tamanha traição. Quase voltou ao convés, mas apenas entortou a boca e continuou.

✦ Os Cristais de MarébyssWhere stories live. Discover now