| 3 - a carta romana |

22 5 3
                                    

Nove anos se passaram antes que eu visse o jovem prodígio novamente e que a tese do meu tio caísse por terra. Claro, havia ouvido falar dele durante algum tempo, mas nada muito concreto.

Era 1773 quando as Parcas e o Todo-Poderoso, talvez zombando de minha ingenuidade, puseram novamente o jovem em minha vida.

Era uma manhã de verão quando o príncipe-eleitor me chamou até seu escritório. Como o servo obediente que era (e ainda sou, mesmo em clausura), prontamente obedeci ao seu chamado.

É importante dizer que, um ano antes, meu tio havia morrido de um tumor; agora aos 27 anos estava em seu cargo que ele mesmo, um músico que tocava o cravo e o violoncelo com maestria, apenas havia alcançado aos 67.

O escritório do príncipe eleitor era espaçoso e bem iluminado por janelas grandes e altas. Estantes de mogno cheias de livros e paredes cheias de quadros decoravam o ambiente, junto a um enorme mapa da Europa. Meu mecenas estava de pé junto às janelas com a ajuda de uma bengala, encarando os jardins. Se virou ao ouvir o som de meus passos.

- Ah, Giovanni! Sente-se, por favor!

Fiz como instruído. O eleitor se afastou da janela e mancou até a mesa. Pegou uma carta com o selo quebrado e a abriu, mas não a leu.

- Lembra-se de Ruprecht?

Neguei com a cabeça.

- O jovem prodígio!

- Ah, sim! Ele... o que houve, Alteza?

- Ele está me pedindo um cargo aqui. Até pouco tempo estava estudando música em Roma quando recebeu a notícia da morte do pai. Segundo a carta, não tem desejo algum de voltar à sua cidade natal.

- Por isso tem a audácia de lhe pedir algo!? - exclamei. - Mas o orgulho dele é algo impressionante...!

O eleitor franziu a testa e suas sobrancelhas finas arquearam. Logo me desculpei:

- O senhor sabe o que faz. Por que me chamou?

- Como deve se lembrar, o jovem Ruprecht tem um talento arrebatador para a música, algo que não deve ter mudado nem um pouco. Assim, gostaria de sua opinião em relação ao posto que o jovem ocupará. Sugestões?

- Não está pensando...?

O eleitor riu.

- Não, não...! Claro que não...! O cargo de Kapellmeister ainda é seu...! Tudo o que peço é sua ajuda para encontrar o cargo perfeito para o jovem mestre.

- Entendo.

O eleitor me deu a carta.

- Leia e pense no que falei.

Assenti, me curvei e saí do escritório.

***

Mais tarde, ao término de meus afazeres, peguei a carta e comecei a leitura. A caligrafia do jovem prodígio era emaranhada, parcialmente trêmula e pequena. Após algum tempo tentando decifrar a escrita do rapaz, consegui ler as páginas que seguiam mais ou menos assim:

Roma, 11 de julho de 1773

Meu caro senhor,

Espero que essa carta lhe encontre em boa saúde e em bom estado de espírito. Estou lhe escrevendo essa missiva para lhe pedir uma posição em sua corte. Nada de muito prestígio, claro, porém com um salário bom o suficiente para que eu consiga sustentar tanto a mim quanto à minha família.

Eu não pediria por isso se não fosse importante, então contarei brevemente minha história e os acontecimentos que levaram à escrita dessa carta: Tenho agora 15 anos, e nos últimos dois tenho estudado na Itália sob excelentes mestres. Estudei composição e canto, bem como contraponto e italiano.

No entanto, meus estudos foram interrompidos pela notícia do falecimento prematuro de meu pai, me forçando a ficar em Roma dando aulas. Porém o pagamento não é o suficiente para meu próprio sustento, quem dirá o de minha mãe e irmãs!

Não tenho o desejo de voltar a minha terra natal, ou de ensinar. O magistério é uma profissão nobre, não me entenda mal, mas não consigo me ver trabalhando nisso nem aqui, nem em minha cidade.

Me vejo compondo sob um grande príncipe - o que o senhor é.

Além do mais, Vossa Alteza Sereníssima uma vez me disse que, se eu continuasse no caminho no qual estava, poderia algum dia servi-lo. Pois bem, Vossa Alteza, também lhe escrevo para lhe lembrar sobre essa possibilidade.

Mas e agora, senhor? Sou eu bom o suficiente para sua corte?

Independentemente da resposta, continuo sendo seu servo obediente,

Johan Ruprecht Corvin

Ao término da leitura da missiva, a audácia do jovem prodígio me deixou abismado. Então era bom demais para ensinar!? Além do mais, durante a infância, o jovem havia feito um grand tour, havia ganho mais do que a admiração de meu mecenas! Onde estavam os outros governantes para os quais havia se apresentado? Sumido!? Morrido!?

Não importava: ordens eram ordens, e como o fiel Kapellmeister do eleitor, era meu trabalho segui-las. No dia seguinte à reunião, voltei ao escritório do príncipe, que estava sentado lendo um livro. Seus pés inchados e doentes estavam apoiado em um banquinho almofadado e, como no dia anterior, tinha a mesma bengala a seu lado.

- Tem certeza de que quer ajudá-lo? - comecei.

Já conversamos sobre isso, Giovanni! Seu posto não será prejudicado! - se levantou de sua poltrona com ajuda e mancou até mim. Continuou a falar em uma voz baixa:

- Além do mais... não posso deixá-lo em Roma... seu talento está sendo desperdiçado ali.

- Mas o magistério é...

Ele me interrompeu com um floreio de sua mão,

- Se o rapaz não gosta dessa opção, não há nada que possamos fazer.

Concordo plenamente, Alteza, mas se me permite dizer; certamente durante a meninice de Corvin existiram outros mecenas...

O eleitor soltou uma risada curta e áspera, jogando a cabeça para trás.

- Caso tenha razão, signore, isso ainda não muda o fato de Ruprecht ter me enviado uma carta me narrando suas dificuldades. Se os outros mecenas fossem generosos o suficiente para ajudá-lo, não estaríamos tendo esse diálogo. Mas chega de tangentes que não levam a nada; pensou no posto para o rapaz?

Voltou a se sentar com visível dificuldade.

- Claro!

- Diga.

- Lembro-me de que, há algumas semanas, o senhor me contou que nosso mestre de câmara subitamente nos deixou. Foi para outro principado, não?

- Ah, então está decidido! Excelente, Giovanni! Excelente! Il sera un musicien de cette cour... e, quem sabe...? Talvez um Kappelmeister!

- Mestre de câmara está de bom tamanho, Alteza! - senti meus lábios se contorcerem em um sorriso falso.

- Pois muito bem, Giovanni! Está dispensado! Muito obrigado pela ajuda.

- O prazer foi todo meu, Alteza.

Audiência concluída, voltei para meus aposentos. Me ajoelhei perante a cruz e rezei:

- Senhor, que ele não tome meu lugar... que o Eleitor mude de ideia...

Um Jovem Mestre e um Judas (ORIGINAL)Место, где живут истории. Откройте их для себя