Surpresa

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Letícia caminhou até a sacada e olhou a paisagem. Era incrível. Daquela suíte na cobertura, ela podia ver o lago Paranoá e algumas lanchas em movimentação em meio àquela grande porção de água. Lá de cima, Letícia observou pontos turísticos que ela ainda não tivera tempo para visitar, e suspirou. Pelo visto, o passeio ia demorar.

– Vamos, Daniel! Assim eu vou me atrasar! - exclamou a garota.

Era manhã bem cedo e ela estava esperando Daniel para que eles fossem até o restaurante do hotel tomar o café da manhã. Ela tinha que ir para o estágio naquela manhã, voltar para o hotel rapidinho no horário do almoço e depois ir para a universidade, que era, por sinal, um pouco longe dali. Seria um dia cheio, para variar.

Daniel apareceu, pronto para sair. Geralmente ele acordava de mau humor, mas naquela manhã, especificamente, ele parecia mais disposto.

– Vamos nessa que eu quero comer. - disse Daniel.

O restaurante era, como todo o resto do hotel, bastante luxuoso. Havia um buffet gigantesco esperando por eles. Letícia olhou para as pessoas que estavam ocupando algumas mesas, tomando café da manhã, e achou que todas elas tinham cara de ricas. Aquele hotel era sem dúvida um lugar ótimo, mas Letícia ficava um pouco apreensiva, às vezes. Nunca tinha estado em um ambiente como aquele. Ela tinha receio de quebrar alguma coisa cara (tudo naquele lugar, aliás, parecia terrivelmente caro) e precisar vender a própria alma para pagar o prejuízo.

Enquanto Daniel e Letícia tomavam café, sentados à mesa, a garota reparou que havia algo um pouco diferente em Daniel. Ele parecia animado, e acordar cedo era algo que geralmente não o deixava nada feliz.

– Daniel. Estou te achando meio estranho. - comentou Letícia, colocando açúcar dentro de um copo de suco.

Ele sorriu com vivacidade e olhou para ela com um olhar curioso.

– Jura? Eu, estranho?

– É. - ela confirmou.

Ele olhou para um garçom e fez um sinal. Depois olhou para Letícia com um sorriso ainda maior e disse:

– Estranho mesmo é o fato de que você não parece estar se lembrando do seu próprio aniversário.

Nesse exato momento, um garçom apareceu com um bolo de aniversário que tinha dezoito velas faiscantes no topo. Em menos de um segundo, Daniel e todas as pessoas desconhecidas do restaurante estavam cantando "Parabéns pra você". Um dos funcionários do hotel estourou um lança-confetes e uma chuva de papeizinhos coloridos caiu em cima de Letícia. Daniel estava se divertindo horrores ao ver o quanto ela parecia surpresa e envergonhada.

– Como você foi lembrar do meu aniversário? Nem eu estava me lembrando do meu aniversário. - disse Letícia, sorrindo nervosamente.

"Pessoas, parem de olhar pra mim.", ela implorou mentalmente.

– É claro que eu não podia esquecer. A gente se conhece há tanto tempo.

Letícia olhou para as dezoito velas acesas em cima do bolo. Foi um alívio o momento em que as pessoas pararam de olhar para ela e seguiram com as suas vidas.

– Isso foi muito legal da sua parte, Daniel. Obrigada! Você só podia ter sido um pouquinho mais discreto, né? Eu quase morri de vergonha. - ela disse, sorrindo, enquanto tirava pedaços de papel colorido do cabelo.

– Era esse o objetivo. - o rapaz respondeu, rindo alto - Parabéns, agora você já pode ser presa e assistir a filmes pornô. Vamos lá, faça um pedido e sopre as velinhas, bebê.

Letícia riu e soprou as velas.

Quando os dois retornaram à suíte, outra surpresa esperava Letícia: Daniel também tinha comprado um presente para ela. A garota mal podia acreditar. Não estava esperando aquele comportamento dele. Sabe, ele estava agindo como se gostasse dela. Era estranho. Ela agradeceu e olhou a caixa grande que recebera, não sem alguma desconfiança.

– Você não colocou uma cobra aqui dentro, certo? - perguntou Letícia, lembrando-se que ele sempre tinha gostado de zoar com a cara dela e que aquela parecia uma excelente oportunidade pra armar alguma brincadeira.

– Nossa, você acabou de me dar uma ótima ideia. Por que é que eu não pensei nisso antes? - brincou Daniel.

A garota abriu a caixa e Daniel sorriu quando viu os olhos dela brilharem com o que tinha lá dentro.

– Ah, meu Deus. É a coleção limitada da obra completa de Jane Austen! - Letícia exclamou, olhando encantada para os seis livros de capa dura encadernados em couro vermelho. Eram lindos. Os títulos brilhavam em dourado. A garota abraçou Daniel extremamente entusiasmada, praticamente se jogando em cima dele.

– É o melhor presente que eu poderia ganhar! Eu só não sei como é que você adivinhou que eu adoro essa autora, quer dizer... Eu nunca comentei com você sobre isso. Como é que você poderia ter acertado o presente desse jeito?

– Ah, eu sempre soube que você curtia essas coisas, esses livros chatos de escritoras que viveram no século retrasado. - respondeu Daniel, completamente satisfeito.

Na verdade, ele sabia que Letícia gostava daquela autora em particular por outro motivo. E o motivo fazia parte das muitas idiotices que ele já tinha aprontado com ela, na época do colégio.

Ele se lembrava como se fosse ontem: ela estava sentada em um banco que ficava perto da piscina da escola. Ele se lembrava, inclusive, do título do livro que ela estava lendo. Ela devia estar na sétima série, e estava sozinha no intervalo. Ela costumava andar com seus amigos, mas estava tão interessada por aquele livro que tinha preferido se isolar um pouco para lê-lo.

Daniel, pelo contrário, nunca estava sozinho. Naquela manhã em questão, estava acompanhado por seu grupinho popular, como sempre. Ele não perderia a oportunidade de implicar com ela, é claro.

Daniel e seus amigos se aproximaram de Letícia, mas ela nem tirou os olhos do livro. Daniel detestava ser ignorado daquele jeito. Quem ela achava que era, afinal? Ele disse uma besteira qualquer e arrancou o livro da mão dela. Jogou-o para um colega, para dar início à clássica e irritante brincadeira de bobinho. Letícia ordenou que eles devolvessem o livro dela, e Daniel respondeu que ela teria que pegar de volta, se fosse capaz. A garota, no entanto, nem se moveu do lugar. Ficou olhando para ele e para os amigos dele com uma expressão que oscilava entre desprezo e serenidade. Aqueles olhos castanhos e inteligentes pareciam dizer apenas: "Pobrezinhos. Eles ainda não descobriram o quanto são retardados."

Nada poderia ter deixado Daniel mais frustrado. Aquela garota não era normal. Ela não tinha berrado, nem resmungado. Não tinha nem se levantado do lugar. E ainda por cima, ela tinha que olhar para ele com aqueles olhos, como se estivesse com pena de Daniel por ser desocupado e idiota. Como se ela fosse superior demais, perfeitinha demais, pra dar qualquer atenção a ele. Ela parecia inatingível. Daniel ficou tão irritado com aquela atitude que, quase instintivamente, lançou o livro dela na piscina. O volume chocou-se com a água emitindo um splash e afundou.

Letícia deixou transparecer por um segundo que estava triste e irritada. Ela adorava aquela autora. Estava amando ler aquele livro, e agora ele estava no fundo da piscina. Daniel se perguntou se ela iria chorar. Se ela o xingaria ou tentaria bater nele, se ela o denunciaria para a diretora, fazendo com que o pai dele tivesse que ir até a escola, e isso sem dúvida o deixaria ferrado. Mas ela não fez nada disso. Apenas olhou para ele fixamente, com aquele olhar que nunca mais sairia da cabeça de Daniel. Depois se levantou do banco e foi embora. Assim, sem mais nem menos. Como se simplesmente não valesse a pena perder tempo com ele.

Agora, anos e anos depois, Daniel estava devolvendo aquele livro que ele jogara na piscina, acompanhado dos outros livros daquela mesma autora. Era por isso que Daniel sabia que Letícia gostava dos romances de Jane Austen. É claro que ele não podia apagar o que fizera no passado, mas achava que podia pelo menos tentar consertar as coisas, de alguma forma. O estranho é que Letícia agia como se não houvesse o que consertar.

Sob o Mesmo TetoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora