8 - Café com os Deuses

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Naquela noite, na cidadela, Öfinnel viu seu futuro com clareza e amplitude nunca antes experimentada. Depois disso, viver sua vida foi como executar a coreografia de uma dança, muito bem ensaiada.

E não foi apenas pelo que pode ver na ocasião. Sua mente se alterou. Passou a ter o costume de interromper qualquer atividade para ficar paralisado por alguns instantes visualizando mais e mais do futuro. Não havia surpresas. Ele sabia o que fazer, sabia o que suportar e sabia onde chegaria. Sabia que no fim, seu destino era confrontar face-a-face o senhor dos infernos, o diabo, ou deus caído que chamavam de Arcanael. 

Neste confronto sua espada cruzaria seu corpo e o dele e conforme as demonstrações de Midrakus, uma grande explosão viria a acontecer. Mas para chegar até este encontro havia muitos anos de conflito. Em muitos futuros que enxergou, chamaram esta época de Era Maldita. No total, a guerra durou um pouco menos que mil anos.

Os planos formulados pelos deuses, e que Midrakus ajudou a executar, foram modificados. Voou junto a eles até o local do grande nexo dimensional que conectava a terra aos planos abissais. Dali brotavam demônios como se alguém tivesse pisado num formigueiro. Não se fazia necessário relatar pormenores extremamente violentos da batalha. Öfinnel iria morrer, conforme o que previu naquela manhã. Não haveria como contar para ninguém sobre aquilo depois de morto. Não restariam testemunhas da batalha, de forma que confiar em suas previsões era o único jeito de saber o resultado.

Öfinnel deixou suas memórias, junto com o presente dado por Raastad aos cuidados de Midrakus. Supunha que um dia, suas memórias poderiam ser revistas e parte desta história sombria por ele vivida poderia ser revelada ou reconstruída.

Quando acordou sabia da coreografia a executar naquele dia.Midrakus estava ao lado da cama de Öfinnel quando ele despertou. Seus olhares se cruzaram havia compreensão. Aquele era o último dia de vida do rei.  

Seu último momento seria logo antes do por do sol. O local no qual a batalha final seria travada tornar-se-ia um deserto, totalmente inabitado por milênios. O veneno do metal estrelar contido em sua espada seria suficiente para garantir isto. Entretanto, logo após seu desjejum, veio uma  surpresa. Algo que, por algum motivo, não estava em suas previsões. 

– Saudações. – O misterioso feiticeiro cumprimentou-o. – Hoje é o dia do grande sacrifício. Os deuses estão no salão e nos acompanharão para o desjejum.

– Mas isto... Mas isto é impossível? Eu nunca previ um encontro direto com os deuses...

– Eu sei. Eles sabem. Mas há algo que precisa saber e uma decisão a fazer.

No salão, havia um grupo de pessoas de aparência comum. Öfinnel procurou pelos deuses com os olhos no cômodo adjacente.

Um deles, muito parecido com o rei, alto, forte e com longas e fartas barbas disse numa voz potente.

– Somos nós mesmos. Esperava ver gigantes de quatro braços e olhos brilhantes?

Öfinnel não sabia o que dizer. Quando se aproximou, todos se levantaram e vieram cumprimentá-lo.

– Eu sou o Pai.

Seu aperto de mão foi caloroso, mas seu sorriso demonstrava no fundo um pouco de melancolia. Estava diante de si, o Deus Pai, Forlagon. E, no entanto, aparentava ser um de seus irmãos da raça dos hölmos.

– Sou o Herdeiro e fonte da vida. – disse o segundo.

Quando cumprimentou-o, soube que se tratava de Taior. Sentiu que o ar fresco e o vigor da juventude retornavam a seu corpo. Sentiu a energia de uma criança novamente. Ele tinha a forma de um homem, alto e magro com uma volumosa cabeleira amarrada em duas tranças que caiam na frente do corpo.

– Eu sou a Luz. – Leivisa apresentou-se com uma voz gentil.

Ela tinha a forma de uma bela senhora de cabelos levemente grisalhos e olhar bondoso. Ao tocá-la o mundo se iluminou de uma forma diferente. Havia novas cores e formas. Ao redor dos deuses passou a enxergar luzes de multicores, como aquelas que vira na cidadela branca. Sentiu que a cada toque, recebia uma benção como presente.

– Eu sou Criação. – Cumprimentou-o um garoto de uns dez anos. Tinha um sorriso maroto e cabelos um pouco despenteados. Não houve nenhum efeito que ele pudesse perceber.

Antes que o próximo viesse, o rei reconheceu seu olhar. Era um homem, mais baixo que ele, mas muito musculoso. Tinha uma barba curta e muito densa e a cabeça levemente calva.

– Eu o fiz general... – balbuciou o rei. Estava surpreso em perceber que um dos deuses havia lutado entre os mortais, sob disfarce.

– Ah sim, uma grande honra lutar em seu exército! Sou Força. Mas pode me chamar de Arnemon mesmo. E logo mais, teremos uma luta e tanto! – completou excitado.

– Não sabemos disso ainda. – disse o Pai repreendendo-o com um olhar.

– Ah pai, ele vai topar. Eu tenho certeza!

– Quanto a isso veremos. Vamos todos nos sentar. – indicou o Pai.

– E os demais? – Öfinnel indagou.

– A Mãe e Sabedoria estão na terra natal do elfos. Esta guerra não é para eles. – explicou Taior, alisando uma de suas tranças.

O rei concordou e provou um pouco da comida em silêncio. O silêncio perdurou até que o Herdeiro falou – Você deve estar se perguntando: qual o significado deste encontro? Estou certo?

– Suponho que sim.

Taior prosseguiu – Nossa real forma e propósito, na maior parte dos casos, vai além a atual capacidade de compreensão dos tão jovens como você. Portanto, para estarmos aqui e prestarmos explicações, precisamos de alegorias.

– Como nossa aparência – completou Leivisa.

Öfinnel sentia um forte desconforto entrando numa situação não prevista. Já estava habituado a ter certeza dos acontecimentos vindouros. – Certo. E o que precisa ser explicado? Já não conheço meu destino? Já não fiz minha escolha? Para que tudo isto?

– Sim, no passado, quando precisamos, não nos decepcionou. Mas esta é a última oportunidade que tem para decidir se quer mesmo sacrificar sua vida em favor do fim deste conflito.

– Não sei como procedem os deuses, mas minhas escolhas eu renovo todos os dias e em muitos casos, como durante esta guerra, precisei renovar meu compromisso, mais de uma vez por dia. Não vejo por que hoje seria diferente.

O menino falou, indo direto ao assunto – Você bem sabe que as crenças do pós vida não são apenas crenças. Há de fato uma jornada adiante. Porém, em seu caso, há um problema. A explosão que irá enfrentar, de tão perto, pode não apenas matar seu corpo, mas também, poderá decompor sua alma.

– Decompor minha alma?

– Sim, e caso isto ocorra, não haverá pós vida. Sua existência terá chegado mesmo a um fim.

– Eu não sou holmös de voltar atrás, vocês são deuses e deveriam saber muito bem disto. De qualquer forma, agradeço sua consideração.

– Escute Öfinnel – chamou o Pai – É importante que saiba que o seu sacrifício não será o único. A nós também, cabe dura tarefa, pois para dar-lhe a chance, de confrontar o senhor do abismo, teremos que penetrar em seus domínios e forçar sua vinda para nossa esfera. E mais, apenas de lá e quando seu destino for cumprido, poderemos selar a passagem entre mundos. Seremos prisioneiros dos abismos, talvez para sempre. E tudo isso, por que há um propósito maior para este mundo que está ameaçado. No entanto saiba, faremos o que nos for possível para resgatar sua alma para a pós-vida.

Öfinnel tomou um copo que estava à mesa e propôs – Então brindemos à nossa terra. Que depois de tantos conflitos ela possa encontrar um pouco de paz. À paz!

De copos erguidos, os deuses personificados responderam em uníssono – À paz.



Öfinnel. Rei. Vidente. Guerreiro. Lenda.Where stories live. Discover now