Prólogo - Vitral Quebrado

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Das poucas coisas de que me lembro com certeza nesta vida, a mais agridoce das lembranças sempre foi e será, a cor dos cabelos de Anne Elise quando nos encontramos a primeira vez. Ela estava de costas, coberta por um casaco empapado de sangue e sendo levada as pressas pra dentro de uma ambulância. Era um dia sem graça, cinzento, mas no momento em que ela se virou com seus grandes olhos azuis, um fiapo de sol iluminou aqueles fios dourados.

Foi algo tão intenso que mal me lembro de como fui parar dentro da ambulância com ela ou como consegui depois de semanas, que ela me ligasse. Tomamos um café, rimos de algumas bobagens e no fim da noite estávamos na mesma cama. Parecia algo muito natural pra nós. O café e a cama.

— Você está atrasado. E sabe disso.

— É eu sempre sei. —  Anne havia marcado de me ver naquela tarde na capela de Saint Laurent. Foi exatamente naquele mesmo lugar que pus meus olhos nela e naquele casaco sujo de sangue. Embora ela estivesse séria e olhando fixamente para aquela imagem sinistra de J.C atrás do altar, não resisti em acender um cigarro.

Nunca tive muito respeito por religião. Nunca gostei de igrejas.

Ela me lançou aquele olhar irritado com o canto dos olhos. Mesmo vestida com aquele suéter velho e verde, as botas de caminhada sujas de terra, Anne continuava linda. Os anos só faziam bem a ela.

— Por quê? — ela desviou os olhos para o vitral que estava ao lado. Anjos rodeavam um santo qualquer, assistindo aquela conversa de seu paraíso de vidro colorido. — Você me deixou sozinha.

— É eu deixei. — soprei a fumaça para o alto e ela me fuzilou com os olhos. Sentia o quanto ela estava me repreendendo por fumar de frente pro altar de uma igreja. Ora, dane-se. Se J.C estivesse incomodado com a fumaça, o cigarro se apagaria sozinho.

— O que eu fiz? Foi por causa da criança?

— Não teve nada a ver com a criança, Anne — revirei os olhos. Ela sempre tocava neste assunto, como se houvesse necessidade de relembrar. Traguei o cigarro quase de uma vez e joguei o restante no chão, apagando com um dos pés. — Eram caminhos opostos. Você queria uma coisa, eu outra, nunca daria certo. Aliás, como o garoto está?

— Morto. — ela soou fria e severa com aquela palavra. Eu consegui sentir nos meus ossos o peso que aquilo tinha pra ela.

— Sinto muito.

— Não, você não sente nada.

Existem momentos na vida em que um homem tem que saber recuar, dizer adeus e sumir. Simples momentos em que você só tem que mover sua bunda e dar o fora de onde está. Eu havia chego naquele momento, olhado direto no rosto dele e deixado passar. Fiquei ali parado, enfiando as mãos nos bolsos e observando os anjos inquisidores naquele altar, olhando pra nós dois como se soubessem mais do destino do que qualquer um.

Como eu odeio igrejas.

— Você já arranjou outra, Alec? — um suspiro se soltou dela, parecia uma pergunta complicada.

— Não. Não tenho tempo pra isso. — achei graça, mas não olhei pra ela. Meus sapatos pareciam bem mais interessantes do que cruzar meus olhos com Anne de novo. — Você sabe disso. Eu nem tinha tempo pra você.

— Mesmo assim me traiu.

— Isso não vem ao caso. — e lá veio o momento de novo, minha chance de ir embora antes que ela começasse a gritar e chorar. Mas ela não gritou, nem me bateu como eu esperava.

— Nada vem ao caso pra você... — a mágoa era nítida na voz dela.

— Não é assim, Anne...

— Você me deixou sozinha! Você nos deixou! —vi que ela apertou a barriga por baixo daquele suéter feio quando ergueu a voz.

LavandaWhere stories live. Discover now