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NO AVIÃO. Em algum lugar sobre o Continente Asiático.

Há muitas vantagens de se estar desempregado e sem dinheiro. Segundo David, poltrona 27A, uma delas era saber a procedência do café que se bebe. Nos escritórios, bares e em viagens, sempre tem a possibilidade de alguém estar tendo um dia ruim e resolver vingar-se no resto da humanidade. Poderia ter pensado em qualquer outra bebida, mas era um copo desta que ele estava desejando naquele momento, então pareceu uma boa ideia começar os devaneios por ela. A viagem ainda duraria algumas horas.

David não estava desempregado, não estava há bastante tempo.

"Você terá que achar coisas, já jogou 'Onde Está Wally'? É semelhante". Foi o que o Álvaro, seu chefe com ares de contador e dono de um escritório num prédio luxuoso do Centro lhe falou. David estava desesperado por dinheiro, caso contrario, não teria aceito. Cheirava a encrenca.

- Exatamente o que eu devo procurar? Cães perdidos?

- Se for o que nossos clientes pedirem, sim. Só que geralmente são objetos maiores e mais raros. Ouça David, eles têm dinheiro, muito dinheiro, e adoram gastar comprando coisas para fazer inveja para os outros ricos. Você nunca vai saber quem eles são, alguns só entram em contato por intermediários, nem eu imagino quem sejam; nos pagam para encontrar relíquias para eles.

- E o que acontece se a relíquia tiver dono?

- Tenta negociar. Caso contrário, vá embora para outro país e nos próximos meses, esteja em locais com gente que confirmem que você estava lá.

David sentiu um calafrio relembrando, como no dia em ouviu isso pela primeira vez. O trabalho, no final das contas, era bom. Trocou os direitos trabalhistas por viagens ao redor do mundo e um cartão de credito cujas despesas nunca eram descontadas da sua folha de pagamento.

Na maioria das vezes eram joias, peças arqueológicas e documentos antigos. Já estava nessa há anos e os pedidos iam se tornando cada vez mais complicados, ele não demorou pra entender que brincos de jade era trabalho de iniciante. As buscas mais interessantes eram dadas para quem tinha experiência no assunto. David não conhecia pessoalmente os outros, quer dizer, topou com um ou dois deles na antessala do Álvaro, mas nada de conversas amigáveis como "e aí, alguma vez te pediram para conseguir sangue do dragão de Mauritânia?", "Não, mas estou vindo da Finlândia, estava procurando o livro encadernado com pele de duendes que está enterrado numa geleira de lá". Seria a conversa de sala de espera mais psicodélica de todos os tempos.

O leitor deve estar surpreso com esses itens, ditos fantasiosos. A maioria deles realmente era. Quando isso acontecia, um bom manuscrito original de um bestiário, ou de um grimório, onde apareça uma citação qualquer, é o suficiente.

David encontrava objetos que a maioria das pessoas nunca vai saber que existiram, que a ciência fecha os olhos para a sua veracidade, que estão guardados em cofres de sociedades secretas ou que sua localização está codificada dentro de uma lenda folclórica do séc. III.

Conseguia qualquer coisa, muitas delas. Menos uma boa xícara de café numa viagem de 17 horas.

A DançaWhere stories live. Discover now