Ar poluído

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Estava escuro naquele dia. Não sei se o céu se escureceu por ser meu último dia, mas estava um breu. Escuro como se fosse noite. As pedras das calçadas estavam lá e ela estava em cima delas, andando como sempre andou, no mesmo ritmo de todo o dia, no mesmo horário de sempre. Nada de diferente. A não ser a escuridão que aquele dia quente e abafado tinha.

Eu nunca soube o nome dela. Nunca soube a cor do olhos dela. Nunca soube se eram pretos, castanhos ou verdes. Nunca deu pra ver, ela estava longe, eu estava longe, estava tudo longe e eu estava esperando que uma bomba caísse do céu para que com a explosão ela voasse bem para perto de mim.

Eu estava sentado na banqueta, na frente da loja, respirando ar poluído e ouvindo a música ruim da loja que não era minha e que nunca seria, a loja que só louco entrava já que uma vez ocorreu uma chacina ali dentro e isso só afastou ainda mais a clientela. Eu só trabalhava ali porque foi o único lugar que me aceitou e porque o salário mensal me dava dinheiro o suficiente para fazer pelo menos duas refeições por dia. Eu estava ali respirando ar poluído e olhando para ela.

Nunca me dei o trabalho de descrever tudo o que sabia sobre ela, já que eu não sabia nada. Sabia que sua pele era morena, que seu cabelo era curto e que ela era pequena. Sabia que sua bolsa era verde escuro. Sabia que ela todo dia ia para algum lugar ali perto. Sabia que ela era linda e que eu era perdidamente apaixonado por ela, mesmo nem conhecendo naa dela, nem seu nome, nem sua voz, nem seus olhos e nem se ela era uma boa pessoa. Talvez eu tenha só me apaixonado por sua carne, mas era muito mais que isso e eu sabia.

Passava pessoas e eu dava os planfetos. Alguém entrava e eu também entrava para atender. Ela nunca entrou lá mas eu sempre me permiti pensar qual era o nome dela, o que ela fazia, quem era ela e se ela iria morrer atropelada pelo carro preto que entrava na esquina enquanto ela atravessava a rua.

Em um dos meus devaneios imaginei seu nome sendo Elena. No outro cheguei a pensar se ela tinha algum transtorno mental. Anorexia, bipolaridade, sociopatia ou qualquer coisa parecida. Já imaginei que ela pudesse ser assexuada, ser estrangeira e ter nascido no Canadá, ser casada, ter 48 anos e ter usado um tratamento rejuvenescedor de beleza, ser pedófila ou quem sabe necrofilíca, ter problemas de relacionamentos piores que os meus e outras mil coisas que poderiam atrapalhar um relacionamento entre nós dois. Não que eu achasse que se ela fosse qualquer coisa dessas eu ia simplesmente me desapaixonar por ela, mas pelo menos eu teria uma desculpa para não ir até ela, perguntar seu nome, roubar um beijo e sair correndo na esperança de ter um aneurisma que exploda na minha cabeça bem na hora em que ela gritaria me chamando de louco ou de tarado e a polícia aparecesse.

Todos os dias ela ia e vinha, eu ouvia música ruim, carros passavam, gente se esbarrava, as pedras das calçadas eram pisadas por seus pés pequenininhos e o cachorro magro e manco que andava por ali lambia meus pés. Mas todos os dias eram diferentes. Todos os dias eu criava uma situação na minha cabeça, uma situação que só aconteceria em um universo distópico e se eu não fosse eu. Uma situação que houvese ela. Mas isso são aquelas coisas inexplicáveis de minha cabeça, aquelas ilusões que todo o ser humano existente no planeta já se permitiu criar. Não importa se as ilusões foram românticas ou não, você sempre estará iludido. E se não, você que está iludindo alguém.

Um dos dias que eu mais gostei de ter fantasiado com ela foi quando um apocalipse zumbi surgiu do nada. Só eu, ela, o cachoro manco e o rapaz do sushi estávamos normais ainda. Então quando um zumbi tentou agarrá-la, ela gritou e correu até mim e ao cara do sushi para nos escondermos. Imaginei a sua voz sendo inconfundívelmente doce e meio parecida com a da Beyonce. Começou a chover uma chuva tóxica. Meteoros, explosões, sangue e mais sangue junto com uns zumbis aleatórios. A gente matou um bando de zumbi e o cachorro e cara do sushi acabaram virando zumbis também. Então pegamos um carro e fugimos. Lá nos casamos. Fim.

Havia um oceano entre nós e isso era inquebrável. Imutável. O problema nem era ela, eu sabia com toda a certeza que era eu. Um daqueles clichês.

Eu nunca falaria com ela do mesmo jeito que nunca dei bom dia para o cara do sushi e nem retribuí o carinho do cachorro manco. Mas não acho que eles se importariam se eu falasse. Só eu me importo com essas coisas.

Todos os dias o mesmo ar, o mesmo calor insuportável, como se eu estivesse dentro de uma estufa. Ela ia e vinha, ia e vinha, ia e vinha. Será que ela gostava mesmo do David Bowie? Ela tinha um camiseta dele. Será que nem sabia quem era e só comprou por comprar só porque achou bonitinha? Eu nem sei, eu não conhecia nada dela para saber isso. E nunca iria conhecer.

O sinal estava aberto e ela estava esperando fechar para ela poder atravessar a rua. Ela era mais cautelosa do que eu em relação à carros e atropelamentos. Esperava pacientememte o sinal, ouvindo alguma coisa no fone de ouvido. Podia ser música. Podia ser um áudio livro ou um podcast. Podia não estar ouvindo nada, só estar comos fones no ouvido por mania, como eu.

Naquele exato dia, o dia que estava escuro e trágico, fantasiei algo bem triste e melodramático.

Ela vinha pela calçada e colocou seus tênis azuis no asfalto, depois deu seus passos graciosos e um carro veio rasgando a pista entrando em choque com seu corpo pequeno à fazendo voar. Ela voou, voou, voou como borboleta, como uma folha quebradiça de uma árvore qualquer. Voou, a pequena folha, e se chocou contra a parede amarela da sapataria. Ouviu-se gritos. O carro era vermelho. Em contato com aquele sol escaldante ele flamejava. E flamejou, suas chamas vorazes no capô do carro, em contato com pequenas gotinhas de sangue. Flamejou, como um raio pelas ruas, até não ser mais visto.

Então lá estava. Ela, o corpo inerte, a perna esquerda torta de um jeito esquisito e os olhos fechados. Muita gente gritava, falava, e uns gravavam a situação com seus celulares. Idiotas. A garota estava morrendo e eles lá assitindo como se fosse um show psicodélico.

Eu, embasbacado corri até ela. Falei tudo que queria. Ela já estava morta mesmo. Dei um beijo na boca dela e falei que ela era linda.



A imagem de sua possível morte ficou inpregnada na minha cabeça.

Quando o carro sumiu, lembrei que estava sentado na banqueta na frente da loja. Ela atravessou a rua sã e salva.

Quando a vi dobrar a esquina voltei a minha chatice de todo o dia. A rádio da loja tocava Spice Girls. Era uma das menos piores escolhas músicais do dono daquela espelunca.

Comecei a observar a rua à minha frente e o vi. O cachorro esquelético e magricela que lambia meus pés, deitado no meio da rua. Não sei se ele era um cachorro suicida ou só estava fraco demais para andar, mas só sei que quando percebi, já estava no meio da rua espantando o animal. Ele correu.

Quando me virei para voltar para a minha banqueta e para as Spices Girls, vi um caminhão enorme à apenas dois centímetros de distância de mim. Quando a estrutura do carro chocou-se contra mim, senti todos os meus ossos se partirem. Levantei vôo, como uma libélula desorientada, me chocando contra a parede amarela da sapataria. Eu não sentia meu corpo, só ouvia o barulhos dos ossos sendo triturados e a dor escruciante da morte. Minha visão escurecia lentamente, e eu pude ver meu sangue manchando a calçada em que eu morria. O motorista desceu do caminhão vermelho que flamejava debaixo daquele sol. Não conseguia lembrar de nada que estava acontecendo. Quando tinha um círculo de pessoas à minha volta, todas assustadas, umas ao meu lado me perguntando coisas que eu não conseguia entender, vi ela. A ultima coisa que eu vi antes de morrer. Ela, no meio daquelas pessoas, tirando fotos de meu corpo sem vida.

E pela primeira vez desde sempre, me arrependi de já ter respirado o mesmo ar que ela.

Fantasmas EscritosWhere stories live. Discover now