O Poço e o Pêndulo

538 9 0
                                    

(THE PIT AND THE PENDULUM, 1842-43)

Impia tortorum longas hic turba furores Sanguinis innocui, non satiata, aluit,Sospite nuic patria, fracto nunc funeris antro,Mors ubi dira fuit vita salusque patent.

(Quadra composta para os portões de um mercado a ser levantado no lugar do Clube dos Jacobinos, em Paris) Eu estava extenuado, extenuado até a morte, por aquela longa agonia. E quando eles, afinal, me desacorrentaram e me foi permitido sentar, senti que ia perdendo os sentidos. A
sentença, a terrÍvel sentença de morte, foi a última frase distintamente acentuada que me chegou aos ouvidos. Depois disto, o som das vozes dos inquisidores pareceu mergulhar num
zumbido fantástico e vago. Trazia-me a alma a ideia de rotação, talvez por se associar, na
imaginação, com a mó de uma roda de moinho. Mas isto durou apenas pouco tempo, pois logo
nada mais ouvi. Contudo, durante algum tempo, eu via... porém com que terrível exagero! Eu
via os lábios dos juízes vestidos de preto. Pareciam-me brancos, mais brancos do que as
folhas de papel sobre as quais estou traçando estas palavras, e grotescamente delgados; mais
adelgaçados ainda pela intensidade de sua expressão de firmeza, de imutável resolução, de
desprezo pela dor humana. Eu via os decretos do que, para mim, representava o Destino
saírem ainda daqueles lábios. Via-os torcerem-se, com uma frase letal. Via-os articularem as
sílabas do meu nome, e estremecia por não ouvir nenhum som em seguida. Via, também, durante alguns minutos de delirante horror, a ondulação leve e quase imperceptível dos panejamentos negros que cobriam as paredes da sala. E, depois, meu olhar
caiu sobre as sete grandes tochas em cima da mesa. A princípio, elas tomaram o aspecto da
Caridade e pareciam anjos brancos e esbeltos que me deviam salvar; mas depois,
repentinamente, inundou-me o espírito uma náusea mais mortal e senti todas as fibras de meu
corpo vibrarem como se eu tivesse tocado o fio de uma pilha galvânica, enquanto os vultos
angélicos se tornavam espectros insignificantes como cabeças de chama, e via bem que deles
não teria socorro. E, então, introduziu-se-me na imaginação, como rica nota musical, a do
tranquilo repouso que deveria haver na sepultura. Essa ideia chegou doce e furtivamente, e
parece ter-se passado muito tempo até que pudesse ser completamente percebida. Mas, no
momento mesmo em que o meu espírito começava. enfim, a sentir propriamente e a acarinhar
essa ideia, os vultos dos juízes desapareceram, como por mágica, de minha frente; as altas
tochas se foram reduzindo a nada; suas chamas se extinguiram por completo; o negror das
trevas sobreveio. Todas as sensações pareceram dar um louco e precipitado mergulho, como
se a alma se afundasse no Hades. E o universo não foi mais do que noite, silêncio e
imobilidade.
Eu tinha desmaiado. No entanto, não direi que havia perdido por completo a consciência. Não tentarei definir o que dela ainda permanecia, nem mesmo procurarei
descrevê-lo. Todavia, nem tudo estava perdido. No sono mais profundo... não! No meio do
delírio… não!. No desmaio... não! Na morte... não! Nem mesmo no túmulo tudo está perdido!
De outra forma, não haveria imortalidade para o homem. Ao despertar do mais profundo sono,
quebramos a teia delgada de algum sonho. Entretanto, um segundo depois, por mais fraca que
tenha sido essa teia, não nos lembramos de ter sonhado. No voltar de um desmaio à vida, há
duas fases: a primeira é o sentimento da existência mental ou espiritual; a segunda é o
sentimento da existência física. Parece provável que, se, ao atingir a segunda fase,
pudéssemos evocar as impressões da primeira, poderíamos encontrá-las ricas em recordações
do abismo transposto. E esse abismo... que é? Como, pelo menos, distinguiremos suas
sombras das sombras do túmulo? Mas, se as impressões daquilo que denominei a primeira fase não são reevocadas à vontade, depois de longo intervalo não aparecem elas espontaneamente, enquanto indagamos,
maravilhados, donde poderiam ter vindo? Aquele que nunca desmaiou é quem não descobre
palácios estranhos e rostos esquisitamente familiares em brasas ardentes; é quem não percebe
a flutuar, no meio do espaço, as tristes visões que a maioria não pode distinguir; é quem não
medita sobre o perfume de alguma flor desconhecida; é quem não tem o cérebro perturbado
pelo mistério de alguma melodia que, até então, jamais lhe detivera a atenção. Entre as frequentes e intensas tentativas de recordar, entre as lutas encarniçadas para recolher alguns vestígios daquele estado de aparente aniquilamento no qual a minha alma
havia mergulhado, momentos houve em que eu sonhava em ser bem sucedido: houve períodos
breves, bastante breves, em que evoquei recordações que a lúcida razão de uma época
posterior me assegura relacionarem-se apenas, àquela condição de aparente inconsciência.
Essas sombras de memória falam, indistintamente, de altas figuras que arrebatavam e carregavam em silêncio, para baixo... para baixo.. cada vez mais para baixo… até que uma
horrível vertigem me oprimiu à simples ideia daquela descida sem fim. Falam-me, também. de um vago horror no coração, por causa mesmo daquele sossego desnatural do coração. Depois, sobrevém uma sensação de súbita imobilidade em todas as
coisas, como se aqueles que me transportavam (cortejo espectral) houvessem ultrapassado, na
sua descida, os limites do ilimitado e se houvessem detido, vencidos pelo extremo cansaço da
tarefa. Depois disso, reevoco a monotonia e a umidade, e depois tudo é loucura -a loucura de
uma memória que se agita entre coisas repelentes. Bem de súbito voltaram à minha alma o
movimento e o som: O tumultuoso movimento do coração e, aos meus ouvidos, o rumor de
suas pancadas. Depois, uma pausa em que tudo desaparece. Depois, novamente o som, o movimento e o tato -uma sensação formigante invadindo- me o corpo. Depois, a simples consciência da existência, sem pensamento, situação que durou muito tempo. Depois, bem de repente, o pensamento, um terror arrepiante, e um esforço
ardente de compreender meu verdadeiro estado. Depois, um forte desejo de recair na
insensibilidade. Depois, uma precipitada revivecência da alma e um esforço bem sucedido de
mover-me. E agora, a plena lembrança do processo, dos juízes, dos panos negros, da sentença,do mal-estar, do desmaio. Por fim, inteiro esquecimento de tudo que se seguiu, de tudo que um
dia mais tarde e acurados esforços me habilitaram a vagamente recordar. Até aqui, não tinha aberto os olhos. Sentia que estava deitado de costas, desamarrado. Estendi a mão e ela caiu, pesadamente, sobre algo úmido e duro. Deixei que ela ficasse alguns
minutos, enquanto me esforçava por adivinhar onde poderia estar e o que me acontecera.
Desejava ardentemente, mas não o ousava, servir-me dos olhos. Receava o primeiro olhar para os objetos que me cercavam. Não que eu temesse olhar para coisas horríveis, mas porque ia ficando aterrorizado, temendo que nada houvesse para
ver. Por fim, com selvagem desespero no coração, abri rapidamente os olhos. Meus piores
pensamentos foram, então, confirmados. Cercava-me o negror da noite eterna. Fiz um esforço
para respirar. A espessa escuridão parecia oprimir-me e sufocar-me. A atmosfera estava
intoleravelmente confinada. Conservei-me ainda quietamente deitado, fazendo esforços para
exercitar minha razão. Recordei os processos inquisitoriais e tentei, a partir deste ponto,
deduzir minha verdadeira posição. A sentença fora pronunciada e me parecia que bem longo
intervalo de tempo havia, desde então, decorrido. Contudo, nem por um instante supus que
estivesse realmente morto. Tal suposição a despeito do que lemos em romances, é
completamente incompatível com a existência real. Mas, onde estava eu e em que situação me
encontrava? Sabia que os condenados à morte pereciam, ordinariamente, em autos de fé, e se
realizara um destes na mesma noite do dia do meu julgamento. Tinha eu sido reenviado para o
meu calabouço à espera da próxima execução, que só se realizaria daí a muitos meses? Vi
logo que não podia ser isto. As vítimas haviam sido requisitadas imediatamente. Além disso,
meu cárcere, como todas as celas dos condenados em Toledo, tinha soalhos de pedra e a luz
não era inteiramente excluída. Uma terrível ideia lançou-me, de súbito, o sangue em torrentes ao coração e, durante breve tempo, mais uma vez recaí no meu estado de insensibilidade. Voltando a mim, pus-me de
pé num salto, tremendo convulsivamente em todas as fibras. Estendi desordenadamente os
braços acima e em torno de mim, em todas as direções. Não sentia nada. No entanto, temia dar
um passo, no receio de embater-me com as paredes de um túmulo. Transpirava por todos os
poros e o suor se detinha, em grossas e frias bagas, na minha fronte. A agonia da incerteza
tornou-se, afinal, intolerável e, com cautela, movi-me para diante, com os braços estendidos.
Meus olhos como que saltavam das órbitas, na esperança de apanhar algum débil raio de luz.
Dei vários passos, mas tudo era ainda escuridão e vácuo. Respirei mais livremente. Parecia
evidente que minha sorte não era, pelo menos, a mais horrenda. E então, como continuasse ainda a caminhar, cautelosamente para diante, vieram-me, em tropel, à memória, mil vagos boatos a respeito dos horrores de Toledo. Narravam-se
estranhas coisas dos calabouços, que eu sempre considerara como fábula, coisas no entanto,
estranhas e demasiado espantosas para serem repetidas, a não ser num sussurro. Ter-me-iam
deixado para morrer de fome no mundo subterrâneo das trevas? Ou que sorte, talvez mesmo
mais terrível, me esperava? Conhecia muito bem o caráter de meus juízes para duvidar de que
o resultado seria a morte, e morte de insólita acritude. O modo e a hora eram tudo o que me
ocupava e me perturbava. Minhas mãos estendidas encontraram. afinal, um sólido obstáculo. Era uma parede, que do mal-estar, do desmaio. Por fim, inteiro esquecimento de tudo que se seguiu, de tudo que um
dia mais tarde e acurados esforços me habilitaram a vagamente recordar. Até aqui, não tinha aberto os olhos. Sentia que estava deitado de costas, desamarrado. Estendi a mão e ela caiu, pesadamente, sobre algo úmido e duro. Deixei que ela ficasse alguns
minutos, enquanto me esforçava por adivinhar onde poderia estar e o que me acontecera.
Desejava ardentemente, mas não o ousava, servir-me dos olhos. Receava o primeiro olhar para os objetos que me cercavam. Não que eu temesse olhar para coisas horríveis, mas porque ia ficando aterrorizado, temendo que nada houvesse para
ver. Por fim, com selvagem desespero no coração, abri rapidamente os olhos. Meus piores
pensamentos foram, então, confirmados. Cercava-me o negror da noite eterna. Fiz um esforço
para respirar. A espessa escuridão parecia oprimir-me e sufocar-me. A atmosfera estava
intoleravelmente confinada. Conservei-me ainda quietamente deitado, fazendo esforços para
exercitar minha razão. Recordei os processos inquisitoriais e tentei, a partir deste ponto,
deduzir minha verdadeira posição. A sentença fora pronunciada e me parecia que bem longo
intervalo de tempo havia, desde então, decorrido. Contudo, nem por um instante supus que
estivesse realmente morto. Tal suposição a despeito do que lemos em romances, é
completamente incompatível com a existência real. Mas, onde estava eu e em que situação me
encontrava? Sabia que os condenados à morte pereciam, ordinariamente, em autos de fé, e se
realizara um destes na mesma noite do dia do meu julgamento. Tinha eu sido reenviado para o
meu calabouço à espera da próxima execução, que só se realizaria daí a muitos meses? Vi
logo que não podia ser isto. As vítimas haviam sido requisitadas imediatamente. Além disso,
meu cárcere, como todas as celas dos condenados em Toledo, tinha soalhos de pedra e a luz
não era inteiramente excluída. Uma terrível ideia lançou-me, de súbito, o sangue em torrentes ao coração e, durante breve tempo, mais uma vez recaí no meu estado de insensibilidade. Voltando a mim, pus-me de
pé num salto, tremendo convulsivamente em todas as fibras. Estendi desordenadamente os
braços acima e em torno de mim, em todas as direções. Não sentia nada. No entanto, temia dar
um passo, no receio de embater-me com as paredes de um túmulo. Transpirava por todos os
poros e o suor se detinha, em grossas e frias bagas, na minha fronte. A agonia da incerteza
tornou-se, afinal, intolerável e, com cautela, movi-me para diante, com os braços estendidos.
Meus olhos como que saltavam das órbitas, na esperança de apanhar algum débil raio de luz.
Dei vários passos, mas tudo era ainda escuridão e vácuo. Respirei mais livremente. Parecia
evidente que minha sorte não era, pelo menos, a mais horrenda. E então, como continuasse ainda a caminhar, cautelosamente para diante, vieram-me, em tropel, à memória, mil vagos boatos a respeito dos horrores de Toledo. Narravam-se
estranhas coisas dos calabouços, que eu sempre considerara como fábula, coisas no entanto,
estranhas e demasiado espantosas para serem repetidas, a não ser num sussurro. Ter-me-iam
deixado para morrer de fome no mundo subterrâneo das trevas? Ou que sorte, talvez mesmo
mais terrível, me esperava? Conhecia muito bem o caráter de meus juízes para duvidar de que
o resultado seria a morte, e morte de insólita acritude. O modo e a hora eram tudo o que me
ocupava e me perturbava. Minhas mãos estendidas encontraram. afinal, um sólido obstáculo. Era uma parede, que parecia construída de pedras, muito lisa, viscosa e fria. Fui acompanhando-a, caminhando com
toda a cuidadosa desconfiança que certas narrativas antigas me haviam inspirado. Este
processo, porém, não me proporcionava meios de verificar as dimensões de minha prisão,
pois eu podia fazer-lhe o percurso e voltar ao ponto donde partira sem dar por isso, tão
perfeitamente uniforme parecia a parede. Por isso é que procurei a faca que estava em meu
bolso quando me levaram à sala inquisitorial, mas não a encontrei. Haviam trocado minhas
roupas por uma camisola de sarja grosseira. Pensara em enfiar a lâmina em alguma pequena
fenda da parede, de modo a identificar meu ponto de partida. A dificuldade, não obstante, era
apenas trivial, embora na desordem de minha mente parecesse a princípio insuperável.
Rasguei uma parte do debrum da roupa e coloquei o fragmento bem estendido em um ângulo
reto com a parede. Tateando meu caminho em prisão, não podia deixar de encontrar aquele
trapo, ao completar o circuito. Assim, pelo menos, pensava eu, mas não tinha contado com a
extensão da masmorra ou com minha própria fraqueza. O chão estava úmido e escorregadio.
Caminhava cambaleante para a frente, durante algum tempo, quando tropecei e caí. Minha
excessiva fadiga induziu-me a permanecer deitado e logo o sonho se apoderou de mim naquele
estado. Ao despertar e estender um braço achei, a meu lado, um pão e uma bilha de água. Estava demasiado exausto para refletir naquela circunstância, mas comi e bebi com avidez.
Logo depois recomecei minha volta em torno da prisão e com bastante trabalho cheguei afinal,
ao pedaço de sarja. Até o momento em que caí, havia contado cinquenta e dois passos, e ao
retomar meu caminho, contara quarenta e oito mais, até chegar ao trapo. Havia, pois, ao todo,
uns cem passos, e admitindo dois passos para uma jarda, presumi que o calabouço teria umas
cinquenta jardas de circuito. Encontrara, porém, muitos ângulos na parede e, desse modo, não
me era possível conjeturar qual fosse a forma do sepulcro, pois sepulcro não podia deixar eu
de supor que era. Não tinha grande interesse — nem certamente esperança — naquelas pesquisas mas uma vaga curiosidade me impelia a continuá-las. Deixando a parede, resolvi atravessar a área
do recinto. A princípio procedi com extrema cautela, pois o chão, embora parecesse de
material sólido, era traiçoeiro e lodoso. Afinal, porém, tomei coragem e não hesitei em
caminhar com firmeza, tentando atravessar em linha tão reta quanto possível. Havia avançado
uns dez passos ou doze passos desta maneira, quando o resto do debrum rasgado de minha
roupa se enroscou em minhas pernas. Pisei nele e caí violentamente de bruços. Na confusão que se seguiu à minha queda não apreendi uma circunstância um tanto surpreendente, que, contudo, poucos segundos depois, e enquanto jazia ainda prostrado, reteve
minha atenção.Era o seguinte: meu queixo pousava sobre o chão da prisão, mas meus lábios e
a parte superior de minha cabeça, embora parecesse em menor elevação que o queixo, nada
tocavam. Ao mesmo tempo, minha testa parecia banhada dum vapor viscoso, e o cheiro
característico de fungos podres subiu-me às narinas. Estendi o braço e descobri que havia
caído à beira dum poço circular cuja extensão sem dúvida, não tinha meios de medir no
momento. Tateando a alvenaria justamente abaixo da borda, consegui deslocar um pequeno fragmento e deixei-o cair dentro do abismo e durante muitos segundos prestei ouvidos a suas repercussões ao bater de encontro aos lados da abertura, em sua queda. Por fim, ouvi um
lúgubre mergulho na água, seguido de ruidosos ecos. No mesmo instante ouviu-se um som
semelhante ao duma porta tão depressa aberta quão rapidamente fechada, acima de minha
cabeça, enquanto um fraco clarão luzia, de repente, em meio da escuridão e com a mesma
rapidez desaparecia. Vi claramente o destino que me fora preparado e me congratulei com o acidente oportuno que me salvara. Um passo a mais antes de minha queda e o mundo não mais me
veria. E a morte justamente evitada, era daquela mesma natureza que olhara como fabulosa e
absurda nas estórias a respeito da Inquisição. Para as vítimas de sua tirania havia a escolha da
morte: com suas mais cruéis agonias físicas, ou da morte com suas mais abomináveis torturas
morais. Tinham reservado para mim esta última— O longo sofrimento havia relaxado meus
nervos, a ponto de fazer-me tremer ao som de minha própria voz e me tornara, a todos os
aspectos, material excelente para as espécies de tortura que me aguardavam. Com os membros todos a tremer, arrepiei caminho, tateando até a parede, resolvido a perecer antes que arriscar-me aos terrores dos poços, que minha imaginação agora admitia
que fossem muitos, espalhados em todas as direções, no calabouço. Em outras condições de
pensamento, poderia ter tido a coragem de dar fim imediato às minhas desgraças deixando-me
cair dentro de um daqueles abismos. Mas, então, era eu o mais completo dos covardes. Nem
podia tão pouco, esquecer o que lera a respeito daqueles poços: que a súbita extinção da vida
não estava incluída nos mais horrendos planos dos inquisidores. A agitação do espírito conservou-me desperto por muitas horas, mas, afinal, mergulhei de novo no sono. Ao despertar, encontrei ao meu lado, como antes, um pão e uma bilha de
água. Sede ardente me devorava e esvaziei a vasilha dum trago. Deveria estar com droga,
porque, logo depois de beber, fui tomado dum torpor irresistível. Um sono profundo se
apoderou de mim — sono semelhante ao da morte. Quanto tempo durou isso, não me é
possível dizê-lo, mas, quando, uma vez mais, descerrei os olhos, os objetos que me cercavam
estavam visíveis. Graças a uma luz viva e sulfúrea, cuja origem não pude a princípio determinar, consegui verificar a extensão e o aspecto da prisão.Tinha-me enganado grandemente a respeito
de seu tamanho. Todo o circuito de suas paredes não excedia de vinte e cinco jardas. Durante
alguns minutos, este fato causou-me um mundo de inútil perturbação, inútil, de fato, porquanto
que coisas havia de menor importância. Nas terríveis circunstâncias que me cercavam, por
que me preocupavam as simples dimensões de minha masmorra? Mas minha alma interessava-
se, com ardor, por bagatelas, e ocupei-me em tentar explicar o erro que havia cometido nas
minhas medidas. A verdade, afinal, jorrou luminosa. Na minha primeira tentativa do
exploração havia eu contado cinquenta e dois passos até o momento em que cai. Deveria
achar-me, então. à distância dum passo ou dois do pedaço da sarja. De fato, havia quase
realizado o circuito da cava. Foi então que adormeci e, ao acordar, devo ter refeito o mesmo
caminho, supondo assim, que a volta da prisão era quase o duplo do que é na realidade. Minha
confusão do espírito impediu-me de observar que começara minha volta com a parede à
esquerda e a acabara com a parede da direita. Enganara-me, também, a respeito da forma do recinto. Ao tatear meu caminho descobrira muitos ângulos e daí deduzi a ideia de grande irregularidade. Tão poderoso é o
efeito da escuridão absoluta sobre alguém que desperta do letargo ou do sono! Os ângulos
eram apenas os de umas poucas e ligeiras depressões ou nichos a intervalos desiguais. A
prisão era, em geral, quadrada. O que eu tinha tomado por alvenaria parecia, agora, ser ferro
ou algum outro metal, em imensas chapas, cujas suturas ou juntas causavam aquelas
depressões. Toda a superfície daquele recinto metálico estava grosseiramente brochada com os horríveis e repulsivos emblemas a que a superstição sepulcral dos monges tem dado origem.
Figuras de demônios, em atitudes ameaçadoras, com formas de esqueletos e outras imagens
mais realisticamente apavorantes, se espalhavam por todas as paredes, manchando-as.
Observei que os contornos daqueles monstros eram todos bem recortados, mas que as cores
pareciam desbotadas e borradas por efeito, talvez, da atmosfera úmida. Notei, então, que o
chão era de pedra. No centro, escancarava-se o poço circular de cujas fauces havia eu
escapado; mas era o único que se achava no calabouço. Vi tudo isto indistintamente e com bastante esforço, pois minha condição física tinha grandemente mudado durante meu sono. Encontrara-me agora de costas e bem espichado, numa
espécie de armação de madeira muito baixa. Estava firmemente amarrado a ela por uma
comprida correia semelhante a um loro. Enrolava-se em várias voltas em torno de meus
membros e de meu corpo, deixando livres apenas a cabeça e o braço esquerdo, até o ponto de
apenas poder com excessivo esforço. suprir-me de comida em um prato de barro que jazia a
meu lado no chão. Vi, com grande horror, que a bilha de água tinha sido retirada. Digo com grande horror porque intolerável sede me abrasava. Parecia ser intenção de meus perseguidores exacerbar essa sede, pois a comida do prato era uma carne enormemente
temperada. Olhando para cima examinei o forro de minha prisão. Tinha uns nove ou doze metros de altura e era do mesmo material das paredes laterais. Em um de seus painéis uma figura
bastante estranha absorveu— me toda a atenção. Era um retrato do Tempo, tal como é
comumente representado, exceto que, em lugar duma foice, segurava ele aquilo que, ao
primeiro olhar, supus ser o desenho dum imenso pêndulo, dos que vemos nos relógios antigos.
Havia algo, porém, na aparência daquela máquina que me fez olhá-la mais atentamente.
Enquanto olhava diretamente para ela, lá em cima ( pois se achava bem por cima de mim ),
pareceu-me que se movia. Um instante depois vi isso confirmado. Seu balanço era curto e sem
dúvida vagaroso. Estive a observá-lo alguns minutos, mais maravilhado que mesmo
amedrontado. Cansado. afinal, de examinar-lhe o monótono movimento, voltei os olhos para
os outros objetos que se achavam na cela. Leve rumor atraiu-me a atenção e, olhando para o chão, vi vários ratos enormes que por ali andavam. Haviam saído do poço que se achava bem à vista à minha direita. No mesmo
instante, enquanto os observava, subiram aos bandos, apressados, com olhos vorazes, atraídos
pelo cheiro da carne. Era-me preciso muito esforço e atenção para afugentá-los. Talvez se houvesse passado uma meia hora, ou mesmo, uma hora — pois só podia medir o tempo imperfeitamente —, quando ergui de novo os olhos para o forro. O que vi,
então. Encheu-me de confusão e de espanto. O balanço do pêndulo tinha aumentado em quase uma jarda de extensão. Como consequência natural, sua velocidade era, também, muito maior.
Mas o que sobretudo me perturbou foi a ideia de que ele havia perceptivelmente descido.
Observava agora -com que horror é desnecessário dizer -que sua extremidade inferior era
formada por um crescente de aço cintilante, tendo cerca de trinta centímetros de comprimento,
de ponta a ponta; as pontas voltavam-se para cima e a borda de baixo era evidentemente
afiada como a folha de uma navalha. Como uma navalha, também, parecia pesado e maciço,
estendendo-se para cima, a partir do corte, uma sólida e larga configuração. Estava ajustado a
uma pesada haste de bronze e o conjunto assobiava ao balançar-se no ar. Não pude duvidar, por mais tempo, da sorte para mim preparada pela engenhosidade monacal em torturas. Minha descoberta do poço fora conhecida dos agentes da Inquisição -o
poço cujos horrores tinham sido destinados para um rebelde tão audacioso como eu -o poço,
figura do inferno, e considerado, pela opinião pública como a última Thule de todos os seus
castigos! Pelo mais fortuitos dos incidentes, tinha eu evitado a queda dentro do poço e sabia a
surpresa e armadilha da tortura formava parte importante de todo o fantástico daquelas mortes
em masmorras. Não tendo caído deixava de fazer parte do plano demoníaco atirar-me no
abismo e dessa forma, não havendo alternativa, uma execução mais benigna e diferente me
aguardava. Mais benigna! Quase sorri na minha angústia, quando pensei no uso de tal termo. De que serve falar das longas, das infindáveis horas de horror mais que mortal, durante as quais contei as precipitadas oscilações da lâmina? Polegada a polegada, linha a linha, com
uma decida somente apreciável a intervalos que pareciam séculos... descia sempre, cada vez
mais baixo, cada vez mais baixo! Dias se passaram -pode ser que se tenham passado muitos dias -até que ele se balançasse tão perto de mim que me abanasse com seu sopro acre. O odor da lâmina afiada
entrava-me pelas narinas. Roguei aos céus, fatiguei-os com as minhas preces, para que mais
rápida a lâmina descesse. Tornei-me freneticamente louco e forcejei por erguer-me contra o
balanço da terrível cimitarra. Mas depois acalmei-me de repente e fiquei a sorrir para aquela
morte como uma criança diante de algum brinquedo raro. Houve outro intervalo de completa insensibilidade. Foi curto pois voltando de novo à vida, não notei descida perceptível no pêndulo. Mas pode ter sido longo, pois eu sabia que
havia demônios que tomavam nota de meu desmaio e que podiam, à vontade, ter detido a
oscilação.Voltando a mim, sentia-me também bastante doente e fraco — oh! de maneira
inexprimível — como em consequência de longa inanição. Mesmo em meio das angústias
daquele período. A natureza humana implorava alimento. Com penoso esforço estendi o braço
esquerdo o mais longe que os laços permitiam, e apoderei-me do pequeno resto que me tinha
sido deixado pelos ratos. Ao colocar um pedaço de alimento na boca, atravessou-me imprecisa ideia de alegria... de esperança. Todavia, que havia de comum entre mim e a esperança? Era, como eu disse, uma
ideia imprecisa, dessas muitas que todos têm e que nunca se completam. Senti que era de
alegria... de esperança, essa ideia; mas também senti que perecera ao formar-se. Em vão eu
lutava para aperfeiçoá-la, para recuperá-la. O prolongado sofrimento quase aniquilara todas
as minhas faculdades comuns de pensamento. Eu era um imbecil, um idiota. A oscilação do pêndulo fazia-se em ângulos retos com meu comprimento. Vi que o
crescente estava disposto para cruzar a região de meu coração. Desgastaria a sarja de minha
roupa…voltaria e repetiria suas operações... de novo... ainda outra vez. Não obstante sua
oscilação, terrivelmente larga (de nove metros ou mais) e a força sibilante de sua descida,
suficiente para cortar até mesmo aquelas paredes de ferro, o corte de minha roupa seria tudo
que durante alguns minutos ele faria. Ao pensar nisto, fiz uma pausa. Não ousava passar dessa reflexão. Demorei-me nela com uma atenção pertinaz, como se assim fazendo pudesse deter ali a descida da lâmina.
Obriguei-me a meditar sobre o som que o crescente produziria ao passar através de minha
roupa e na característica e arrepiante sensação que a fricção do pano produz sobre os nervos.
Meditava em todas estas bagatelas, até me doerem os dentes. Mais baixo... cada vez mais baixo, ele descia. Senti um frenético prazer em comparar sua velocidade de alto abaixo com sua velocidade lateral. Para a direita... para a esquerda...
para lá e para cá, com o guincho de um espírito danado... para o meu coração, com o passo
furtivo do tigre! Eu ora ria, ora urrava, à medida que uma ou outra ideia se tornava
predominante. Para baixo... seguramente, inexoravelmente para baixo! Oscilava a três polegadas de meu peito! Debatia-me violentamente, furiosamente para libertar meu braço esquerdo, que só
estava livre do cotovelo até a mão. Podia apenas levar a mão à boca, desde o prato que estava
ao meu lado, com grande esforço, e nada mais. Se tivesse podido quebrar os liames acima do
cotovelo, teria agarrado e tentado deter o pêndulo. Seria o mesmo que tentar deter uma
avalanche! Para baixo... incessantemente para baixo, inevitavelmente para baixo! Eu ofegava e debatia-me a cada oscilação. Encolhia-me convulsivamente a cada balanço. Meus olhos
acompanhavam seus vaivens, para cima e para baixo, com a avidez do mais insensato
desespero; fechavam-se meus olhos, espasmodicamente, no momento da descida, embora a
morte viesse a ser para mim um alívio, e, oh! Que inexprimível alívio! Entretanto, todos os meus nervos tremiam ao pensar que bastava uma simples descaída da máquina para precipitar aquele machado agudo e cintilante sobre meu peito. Era a
esperança, que fazia assim tremerem os meus nervos, que assim me arrepiava o corpo. Era a
esperança, a esperança que triunfa, mesmo sobre o cavalete de tortura, a esperança que
sussurra aos ouvidos do condenado à morte, até mesmo nas masmorras da Inquisição! Vi que
cerca de dez ou doze oscilações poriam a lâmina em contato com minhas roupas, e a essa
observação, subitamente, me veio ao espírito toda a aguda e condensada calma do desespero.
Pela primeira vez, durante muitas horas -ou mesmo dias —, pensei. Ocorreu-me então que a correia ou loro que me cingia era uma só. Não estava amarrado por cordas separadas. O primeiro atrito do crescente navalhante, com qualquer
porção da correia, a cortaria, de modo que eu poderia depois desamarrar-me com a mão
esquerda. Mas quão terrível era, nesse caso, a proximidade da lâmina. Quão mortal seria o
resultado do mais leve movimento! Seria verossímil aliás, que os esbirros do inquisidor não
tivessem previsto e prevenido essa possibilidade? Seria provável que a correia cruzasse o
meu percurso do pêndulo? Receando ver frustrada minha fraca, e ao que parecia, última
esperança, elevei a cabeça o bastante para conseguir ver distintamente o meu peito. O loro cingia meus membros, e meu corpo em todas as direções, exceto no caminho do crescente
assassino. Mal deixara cair a cabeça na sua posição primitiva, reluziu em meu espírito algo que eu não saberia melhor definir senão como a metade informe daquela ideia de libertação, a que
já aludi, anteriormente e da qual apenas uma metade flutuava, de modo vago, meu cérebro, ao
levar a comida aos meus lábios abrasados. A ideia inteira estava agora presente -fraca, apenas
razoável, apenas definida, mas mesmo assim inteira. Pus-me imediatamente a tentar executá-la
com a nervosa energia do desespero. Durante muitas horas, a vizinhança imediata da baixa armação de madeira sobre a qual eu jazia estivera literalmente fervilhando de ratos. Eram ferozes, audaciosos, vorazes. Seus
olhos vermelhos chispavam sobre mim como se esperassem apenas uma parada de
movimentos de minha parte para fazer de mim sua presa. A que espécie de alimento -pensei eu
— estão eles acostumados neste poço?" A despeito de todos os meus esforços para impedi-los, tinham devorado tudo, exceto um restinho do conteúdo do prato. Minha mão contraíra um hábito de vaivém ou de balanço,
em torno do prato, e, afinal, a uniformidade inconsciente do movimento privou-o de seu efeito.
Na sua voracidade, a bicharia frequentemente ferrava as agudas presas nos meus dedos. Com
as migalhas da carne gordurosa, e temperada que ainda restavam, esfreguei toda a correia
onde podia alcançar. Depois, erguendo a mão do chão, fiquei imóvel, sem respirar. A princípio, os vorazes animais se espantaram, terrificados com a mudança... com a cessação do movimento. Fugiram, alarmados, e muitos regressaram ao poço. Mas isso foi só
por um momento. Eu não contara em vão com sua voracidade. Observando que eu ficava sem
mover-me, um ou dois dos mais audazes pularam sobre o cavalete e farejaram o loro. Parece
que isto foi o sinal para uma corrida geral. Do poço precipitaram-se tropas frescas. Subiram
pela madeira, correram sobre ela e saltaram, às centenas, por cima do meu corpo. Absolutamente não os perturbou o movimento cronométrico do pêndulo. Evitando-lhe a passagem, trabalhavam sobre a correia besuntada de gordura. Precipitavam-se, formigavam
sobre mim, em pilhas sempre crescentes. Torciam-se sobre minha garganta, seus lábios frios
tocavam os meus. Eu estava semissufocado pelo peso daquela multidão. Um nojo para que o
mundo não tem nome arfava-me o peito e me enregelava o coração com pesada viscosidade.
Mais um minuto, porém, e compreendi que estaria terminada a operação. Claramente percebi o
afrouxamento da correia. Sabia que em mais de um lugar ela já deveria estar cortada. Com
resolução sobre-humana, permaneci imóvel. Nem errara em meus cálculos nem havia suportado tudo aquilo em vão. Afinal, senti que estava livre. O loro pendia de meu corpo em pedaços. Mas o movimento do pêndulo já me
comprimia o peito. Dividira a sarja de minha roupa. Cortara a camisa por baixo. Duas vezes,
de novo, oscilou e uma aguda sensação de dor atravessou todos os meus nervos. Mas chegara
o momento de escapar-lhe. A um gesto de minha mão, meus libertadores precipitaram-se
tumultuosamente, em fuga. Com um movimento firme -prudente, oblíquo, encolhendo-me,
abaixando-me -deslizei para fora dos laços da correia e do alcance da cimitarra. Pelo
momento, ao menos, eu estava livre. Livre... e nas garras da Inquisição! Mal descera de meu cavalete de horror para o chão
de pedra da prisão, o movimento da máquina infernal cessou e vi que alguma força invisível a
puxara, suspendendo-a através do forro. O conhecimento desse fato me abateu
desesperadamente. Cada movimento meu era sem dúvida vigiado. Livre! Eu apenas escapara de morrer numa forma de agonia para ser entregue a qualquer outra forma pior do que a morte. Com tal pensamento, girei os olhos nervosamente,
em volta, sobre as paredes de aço que me circundavam. Qualquer coisa incomum, certa
mudança que, a princípio, não pude perceber distintamente, era óbvio, produzira-se no
aposento. Durante vários minutos de sonhadora e tremente abstração, entreguei-me a vãs e
desconexas conjeturas. Nesse período, certifiquei-me, pela primeira vez, da origem da luz
sulfurosa que iluminava a cela. Procedia de uma fenda, de meia polegada de largura, que se
estendia completamente em volta da prisão, na base das paredes, as quais assim pareciam que
de fato, eram inteiramente afastadas do solo. Tentei, mas sem dúvida inutilmente, olhar por
essa abertura. Ao erguer-me da tentativa, o mistério da alteração do aposento revelou-se logo à a minha inteligência. Eu observara que, embora o contorno das figuras nas paredes fossem
suficientemente distintos, suas cores pareciam manchadas e indecisas. Tais cores passaram a
tomar, e a cada momento tomavam, um brilho apavorante e mais intenso que dava às espectrais
e diabólicas imagens um aspecto capaz de fazer tremerem nervos, mesmo mais firmes que os
meus. Olhos de demônio, de vivacidade selvagem e sinistra. contemplavam-me vindos de mil direções, onde antes nada fora visível, e cintilavam com o lívido clarão de um fogo que eu não
podia forçar a imaginação a considerar como irreal.Irreal! Mesmo quando respirei, veio-me
às narinas o bafo do vapor de ferro aquecido! Um odor sufocante espalhou-se pela prisão! Um
fulgor mais profundo se fixava a cada instante nos meus olhos que contemplavam minhas
agonias! Uma coloração, sempre mais intensamente carmesim, difundia-se sobre as horrendas pinturas de sangue. Ofeguei! Esforcei-me para respirar! Não podia haver dúvidas sobre os
desígnios de meus atormentadores, oh, os mais implacáveis, os mais demoníacos dos homens!
Fugi do metal ardente para o centro da cela. Entre as ideias da destruição pelo fogo que
impendia sobre mim, o pensamento do frescor do poço caiu em minha alma como um bálsamo.
Atirei-me para suas bordas mortais. Lancei ao fundo os olhares ansiosos. O brilho do teto
inflamado iluminava seus mais recônditos recessos. Contudo, por um momento desordenado, o
espírito recusou-se a compreender a significação do que eu via. Afinal, obriguei-o a compreender — lutei para que penetrasse em minha alma — e aquilo se gravou em brasa na minha mente trêmula. Oh, uma voz para falar! Oh, horror! Oh,
qualquer horror, menos aquele! Com um grito, fugi da margem e sepultei a face nas mãos,
chorando amargamente. O calor aumentava com rapidez e ainda uma vez olhei para cima a tiritar, como num acesso de febre. Segunda alteração se dera na cela... e agora a mudança era, evidentemente, na
forma. Como antes, foi em vão que tentei, a princípio, perceber ou compreender o que ocorria.
Mas não fui deixado em dúvida muito tempo. A vingança inquisitorial fora apressada pela
minha dupla fuga a ela, e não havia mais meio de perder tempo com o Rei dos Terrores.
O quarto fora quadrado. Eu notava que dois de seus ângulos de ferro eram agora agudos e dois, em consequência, obtusos. A terrível diferença velozmente aumentava, com um
grave rugido, ou um gemido surdo. Em um instante o aposento trocava sua forma pela de um
losango. Mas a alteração não parou aí, nem eu esperei ou desejei que ela parasse. Eu poderia
ter aplicado nas paredes rubras ao meu peito como um vestuário de eterna paz. — A morte! —
disse eu. Qualquer morte, porém não a do poço! Louco! Não havia compreendido que o objetivo dos ferros ardentes era impelir-me para dentro do poço? Poderia eu resistir a seu fulgor? Ou,
mesmo que o conseguisse, poderia suportar sua pressão. E então, mais e mais se achatou o
losango, com uma rapidez não me dava tempo para refletir. Seu centro e, naturalmente sua
maior largura ficaram mesmo sobre o abismo escancarado. Fugi… mas as paredes, a apertar-
se impeliam-me irresistivelmente adiante. Afinal, para meu corpo queimado e torcido, não
havia mais de uma polegada de solo firme no soalho da prisão. Não lutei mais, a agonia de
minha alma, porém, se exalou num grito alto, longo e final de desespero. Senti que oscilava
sobre a borda… Desvie os olhos... Houve um ruído discordante de vozes humanas! Houve um elevado toque, como o de muitas trombetas! Houve um rugido áspero como o de mil trovões! Precipitadamente,
recuaram as paredes brasa! Um braço estendido agarrou o meu, quando eu caia, desfalecido,
no abismo. Era o do General Lasalle. O exército francês entrara em Toledo. A Inquisição caíra
nas mãos de seus inimigos.

Contos de Edgar Allan Poe Dove le storie prendono vita. Scoprilo ora