frigorífico humano

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Sabe, meu trabalho nunca foi o melhor de todos, e acho que nunca vai ser mesmo, na verdade só estou nele porque é de família e acho que ficaria com um peso enorme na consciência se fosse o único irmão que não seguisse o negócio de frigoríficos de nossa família. Meu nome é… Ah, não importa meu nome, isso não vai fazer diferença nenhuma. Enfim, trabalho num frigorífico numa cidade aqui do interior de São Paulo, e desde que eu comecei a trabalhar, é disso aqui que eu vivo.

Comecei quando criança, acompanhando meu pai e meu avô enquanto os dois analisavam os processos e faziam o que eles tinham que fazer, que para mim não tinha diferença nenhuma na época.Anos mais tarde e eu fiquei com um cargo importante, sou o responsável pela gerência de tudo aqui e do andamento dos processos. Não sou o mais velho dos irmãos, ainda sim, sou o mais responsável, e não querendo me gabar, acho que nenhum deles seria bom o bastante para ter esse cargo na empresa.

Era então uma noite de quinta-feira, havíamos embalados os últimos pedaços de carne que já estavam carregados no caminhão e já haviam sido mandados para o açougue. Fora eu, a única pessoa que se encontrava por lá era o nosso porteiro, que ficava em sua guarita bem longe de onde eu estava. Chovia bem de leve e estava um pouco frio, clima que eu particularmente gosto muito. Estava no matadouro, um local que me dá arrepios desde que eu era criança, e até hoje, casado e com filhos na universidade, tenho calafrios quando passo por lá.

Carcaças e restos mortais dos animais estavam empilhados em um canto, o cheiro era repugnante e penetrava em meu nariz quase me sufocando. Havia sangue seco espalhado por muitas partes do chão e havia uma parte em que ele se concentrava especialmente, onde ainda havia aquele líquido vermelho que não havia secado. Andei com cuidado e tapando meu nariz, sempre olhando para onde eu pisava.

Deixei minha prancheta com minhas anotações em cima de uma bancada, e junto dela coloquei minha caneta também. Naquela bancada, que na verdade ainda era parte do matadouro, havia uma cabeça de um boi parada bem ali. Estava, claramente, sem o resto de seu corpo, e tinha os olhos fechados e a boca contorcida numa cara de dor de quando sua cabeça fora arrancada de seu corpo. Tentei ignorar aquilo e segui andando.

A única coisa que faltava era ver se estava tudo em ordem dentro da câmara fria, que era logo no fim dali. Fui acendendo algumas luzes no caminho e apagando outras que eram desnecessárias. Meus passos ecoavam naquela imensidão, onde a única alma viva era eu. Abri a pesada e prateada porta da câmara fria, tomando cuidado e travando-a para que ela não se fechasse quando eu estivesse lá dentro e me fizesse morrer congelado. Provavelmente você deve estar pensando que foi isso que ocorreu, que a porta se fechou comigo lá dentro e eu fiquei isolado num local que fazia menos de dois graus Celsius.

Na verdade eu fiquei preso lá dentro, mas não desse jeito. Enquanto eu andava no meio daquele monte de carne e carcaças penduradas, e tomava cuidado, pois o cheiro era forte lá também, contava o estoque para ter certeza de que não faltava nada. Passava a mão cuidadosamente entre aqueles pedaços dos troncos dos animais pendurados em ganchos e via o sangue pingar no chão.

Facas e muitos outros objetos cortantes estavam deixados de lado numa bancada ali dentro também, junto de pedaços de ossos quebrados e partidos que exigiram muito esforço para serem quebrados. Havia um avental de cor meio verde cheio de manchas de sangue espirradas pendurado próximo à porta.

Já estava próximo de sair quando alguma coisa se movendo me chamou a atenção. As enormes peças de carne penduradas se moveram quando alguém passou a mão nelas, e como num dominó, uma foi levando a outra, balançando-se em um loop infinito. Meio coração gelou e eu peguei uma faca para me defender, mas nesse ato frenético, acabei pisando numa poça de sangue que ainda não havia secado. Bati com minha cabeça no chão e apaguei por tanto tempo que só Deus sabe o quanto foi.

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