Capítulo 6 - Um amigo pra dividir fones de ouvido.

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Eu estava com a cabeça borbulhando naquele final de tarde, por isso resolvi cozinhar. Passei no mercado para comprar alguns itens que faltavam para minha receita, avisei a minha mãe que iria fazer o jantar e pedi que trouxessem um vinho branco para eles. Ela estava muito animada.

Entrou na cozinha, ainda sem tirar o vestido que foi trabalhar, de pés descalços e os cabelos loiros em cima da cabeça num coque. Era muito bonita, sabia entrar e sair dos lugares com elegância. Daquelas mulheres que combinavam perfeitamente um vestido azul e um salto vermelho. Nos negócios de Júlio, no ramo alimentício, era seu braço direito na administração, tinha o sorriso e a dureza necessários para enfrentar o dia a dia. O seu sotaque carioca charmoso, mesmo morando em tantos lugares, se manteve intacto. Acho que era a forma de ela lembrar-se das origens, do seu passado duro, enquanto ainda era apenas uma universitária no Rio de Janeiro, vendendo salgados para pagar seus estudos.

- Hum... Qual o menu, Chef? - minha mãe disse, abrindo a tampa da panela. - Penne com frango ao molho de Curry. Deve estar uma delícia!

- Estela, para de cutucar a comida! - eu reclamei.

- Não seja tão chata! Parece até seu... Você sabe que fico nostálgica!

Sei bem as lembranças que veem à mente da minha mãe. Meu pai era um Chef de cozinha de um hotel na Califórnia. Minha mãe, logo depois que se formou, conseguiu uma vaga temporária para trabalhar nesse mesmo hotel. Os dois se apaixonaram, se casaram, e ela engravidou. Tudo isso em menos de um ano. Lembro-me de entrar na cozinha de nossa casa e ver meu pai cozinhar. Quando eu cozinhava e sentia o aroma dos temperos eu lembrava dele e ficava mais calma. Era quando eu me conectava com meu passado seguro e feliz.

- Boa noite, Marina - Júlio me cumprimentou.

- Boa noite.

- Até quando você vai ficar de cara feia para mim? - ele disse, colocando a garrafa de vinho no freezer.

- Júlio, não se preocupe comigo. Só siga sua vida que eu sigo a minha - respondi, sem tirar meus olhos do molho que eu estava mexendo.

- Marina - minha mãe interveio. - Será que toda vez que nós nos mudarmos, você vai ficar fazendo cena? Estou cansada desse clima negativo em casa. Você precisa amadurecer e entender que esse é nosso ganha pão, é a forma que temos de dar algo melhor para vocês.

- Mãe, vocês tem noção de quantas vezes nós já mudamos? Você acha que isso é normal? - respondi.

- Querida - Júlio interrompeu -, essa é a maneira que sua mãe e eu encontramos para que a família ficasse unida. Nós sabemos como foi duro para você perder seu pai, ainda mais, tão pequena. Só estou tentando...

- Não se atreva a falar do meu pai - eu gritei. - Não se atreva a achar que pode tomar o lugar dele. Seu filho, seu único filho, está lá no quarto dele brincando sozinho, porque é isso que essa loucura que vocês chamam de família traz pra gente! Solidão!

Eu desliguei o fogo, tirei o avental e joguei em cima da bancada.

- O molho está pronto. Bom apetite! - eu disse.

- Aonde você vai? - ela me perguntou.

- Vou tentar não enlouquecer...

Fui até meu quarto, vesti minha roupa de corrida, calcei meus tênis, amarrei meu cabelo num rabo de cavalo e segui até o quarto de Caio. Ele jogava tranquilo com fones de ouvido, sem escutar a gritaria da cozinha.

- Vou correr na praça e já volto.

Ele pausou o jogo, fez que sim com a cabeça e continuou de onde estava. Na sala, minha mãe estava me aguardando aflita.

Onde eu quero ficar (Degustação)Where stories live. Discover now