ESQUECER

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Preciso contar isso para você, minha amada, meu outro eu escondido ― os médicos e enfermeiros daqui dizem que isso não é muito bom, confundir-me com você, mas sabemos que não é bem assim, é simplesmente uma forma de reafirmar a parte de você que há mim e vice-versa, nosso amor. Enfim, eles só acreditam na ciência, no que querem acreditar e ver ―, amanheci sem entender ao certo se era dia ou noite, pois para mim não havia passado mais que cinco minutos de olhos fechados. Ledo engano o meu, passara-se uma noite inteira e nada de sonhos. Nadinha.

Corri ligar para o Sal e contar a novidade, se continuar assim, logo estarei fora daqui, logo terei alta. Acredita? Isso é um ótimo sinal. De novo tentei me comunicar com Pedro, em vão.

Já é fim de tarde e o sol perde suas forças, escrevo sobre uma das mesas da Sala de Convívio. Por que a chamam assim será sempre um mistério para mim. Cruzamos, na maioria das vezes, com pessoas em estado pior que o nosso.... Minha mão treme, as letras saem como garrancho, algo de amargo começa a crescer, deslizando suas raízes em forma de garras dentro de mim. Sinto-me sufocado e extremamente cansado. Parece que uma parte de mim é arrancada a força. Meus olhos reviram em suas órbitas. A língua incha e meu corpo todo estremece, esticando-se. Minha carne puxada, rasgando-se, abrindo-se em fendas e revelando certa luz. A dor é insuportável, porém, sinto-me de alguma forma vivo. Um vivo que deseja morrer? Sou tomado por uma força desconhecida. Quero conhecê-la?

― Olá!

Ouço a voz melodiosamente infantil, delicada e carinhosa. Abro os olhos e estou naquela sala etérea. Ela num canto, ao fundo. Tento falar, porém a voz falha, arranha a garganta, como se não usada há tempos. Enquanto tento encontrar os mecanismos da fala, ela continua.

― Senti sua falta. ― A expressão amável me comove. ― Não sou mais tão forte, Vinny. Esses remédios, essa coisa toda está acabando comigo.

― O... O que... O que estou fazendo aqui?

― Está aqui para responder a pergunta que você mesmo já se fez antes de chegar.

― O quê?

A vertigem me assalta, com força bruta. E sei, sei o que quero.

― Sim. ― Respondo, olhando-a suplicante.

― Entendo... ― A vozinha encantadora toma ares de desapontamento. ― Espero que quando se arrepender, não seja tarde e consiga reverter tal decisão.

Por que me arrependeria? É o que quero. E se essa visão, esse sonho, essa menininha pode fazer algo para que eu seja normal, sim, mil vezes sim.

― Sentirei profundamente sua falta.

Quem sussurrou isso? Ela ou ele?

Os cabelos castanhos dela iniciam uma dança majestosa no ar, numa brisa inexistente, mas que me atinge numa lufada morna para em sequência queimar feito gelo e depois fogo, como se me purificasse de alguma maneira absurda.

A vertigem aumenta e sinto um baque surdo.

― Ei, Vinny, cara, acorda!

― Tragam os primeiros socorros, ele está fervendo de febre.

― Chamem o doutor de plantão, rápido!

O loiro abre os olhos e vê que mãos tentam tocá-lo, foge de todas. Escorrega, percebe que está no chão, o suor empapa suas roupas, coladas no corpo.

― Ei, calma, calma, amigão...

Procura se situar, olha em volta e aos poucos sua mente entra nos eixos. Engole em seco, focando a visão, espalma as mãos para frente e fala baixo.

Dual_2Where stories live. Discover now