ESTOU

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Escuto as batidas de meu coração... lentas... lentas... Minha respiração profunda, quase inaudível. Minhas pálpebras pesadas demais... Minha mente em ondas convulsivas... Ouço meu nome ao longe... Bem longe... Nos confins de algum lugar qualquer...

Tudo parece estagnado no universo e há tanta luz... Como de um choque, um puxão vertiginoso, Fernando abre os olhos assustados. Gritos e vozes estranhas surgem aos poucos. Confusão total. Um jato de lembrança o atinge e força-se a olhar para o lado.

— Vinny!!!!

Com o grito da amiga, Tamara larga Flávia e corre à sala, chegando junto com Duda e Bernardo. Os três se deparam com uma cena terrível. Sal pedindo ajuda no celular e Heloá, com as unhas cravadas no braço dele, as pernas abertas, semi flexionadas, o sangue esvaindo do corpo e a morena urrando de dor, com a outra mão no baixo ventre.

— Flávia!

— Ela não pode ajudar, Sal, está bêbada!

— Eu sei, Tammy, mas vai que mesmo assim consegue fazer algo até a ambulância chegar.

O choro de Heloá contorce os corações dos amigos. É uma dor tão pungente, que assola cada um naquela sala, principalmente Tamara e Sal. Bernardo diz que precisam avisar Fernando e pega o celular. Duda concorda, trazendo toalhas limpas e ajudando Heloá a se sentar até a chegada do socorro. Tamara enxuga a testa da amiga, que sua muito, e instrui na respiração.

— Por que ela chamou pelo Vinny? — Tamara sussurra para Sal.

— Não sei, temos de cuidar dela agora.

A morena balança a cabeça afirmativamente, voltando sua atenção à amiga. O negro imagina que talvez ela até chame por Pedro, afinal, também pode ser o pai da criança, força-se a parar de pensar nesses detalhes, o que importa é ajudar Heloá.

— É normal, não é? — Sal quer saber, angustiado. — Esse sangue todo, esses gritos e essa dor, é tudo normal em partos, certo?

Os outros três se entreolham.

— Deve ser... — Diz Bernardo, que não faz a mínima ideia.

Tamara enrola uma toalhinha de mão limpa e coloca entre os dentes da amiga. Duda, tenta levar Sal para um canto, mas Heloá tem suas unhas cravadas de tal forma no braço dele, que fica impossível e ele mesmo se recusa com o olhar, por isso ela explica baixinho que há algo errado, além do parto adiantado, não deveria sangrar desse jeito, pelo menos não agora e nem tanto. A namorada percebe o telefone na mão dele e o pega. Há gente do outro lado da linha! Ela descreve o que está acontecendo. Atônito, Sal volta a olhar devagar para a amiga, acarinhando seus cabelos úmidos pelo suor e oferecendo mais de seu braço para o alívio de sua dor.

A respiração de Heloá está entrecortada, não consegue seguir as orientações de Tamara, tampouco se concentrar em qualquer coisa, a dor é lancinante e a sensação de perda cruciante. O choro se torna contínuo, desesperador.

— Sal... Sal... — ele se aproxima da boca dela — me ajuda, não aguentarei... por favor... me ajuda... não está na hora, ainda não... imploro... Octávio...

— Ela está delirando, onde está essa porcaria de ambulância? — Tamara berra, vendo tanto sangue sair da amiga. — Teremos de levá-la!

— Espera, estão chegando! — Duda fala, concentrada no paramédico ao telefone.

Sal não aguenta mais e as lágrimas se desenham tristes em sua face.

— Vinny... — Fernando mal escuta a própria voz, mas continua tentando. — Vinny, abra os olhos, por favor. — Sente o rosto quente e percebe que a quentura desliza, espalhando-se. Tem certeza, é sangue. Tem muito vidro estilhaçado e a frente do carro está destruída. Concentra seus esforços na mão e consegue por fim, erguê-la e alcançar a do irmão. — Vinny... — A memória começa a voltar com mais clareza, uma corrente elétrica perpassa seu corpo e Fernando se agita, preso pelo cinto de segurança, ouve um estalo no corpo. Assustado, para de se mexer. — Seu imbecil — começa a escutar a própria voz, fraca, sem vida. Também escuta as de outras pessoas, pedindo para que fiquem calmos, que precisam esperar o resgate... —, virou o carro no último segundo para me proteger... — A fala sai atravancada, umedece os lábios com a língua. — Abre os olhos... seu... filho da mãe! — Aperta a mão do loiro o máximo que consegue, o que é quase nada. — Pelo amor de Deus, Vinny... acorda! — Olha para baixo e vê os ferros retorcidos, por onde o corpo do amigo some. Chora pela visão, pela constatação, pela dor que atravessa todo seu corpo. Escuta sirenes e luzes vermelhas invadem as sombras. — O socorro chegou... Vinny... tirarão a gente daqui... ficará tudo bem... — Sente as poucas energias que lhe restam indo embora. — Al-guns me-ses... em recu-pe-ração... fi-siote-ra-pi-as... e... fi-ca-re-mos... bem...

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