2 - Aceitar a perda.

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Quando chego a casa passo no quarto de Ellen para me assegurar que tudo está bem, ela dorme serenamente e eu conto fazer o mesmo, faz duas semanas que não tenho pesadelos e isso é bom mas estranho pois estou tão habituada a ser torturada pelos meus monstros privados que a ausência deles por vezes incomoda-me ainda mais. Acordo sempre às seis da manhã e preparo-me para mais um dia de trabalho, faço o pequeno almoço que aprecio enquanto passo os olhos nas manchetes dos jornais, deixo tudo pronto para Ellen antes se sair com o carro, detesto trânsito por isso prefiro chegar cedo ao trabalho do que aturar as más disposições dos outros condutores. Hoje é dia de aulas por isso trouxe comigo tudo para seguir diretamente para faculdade que graças a deus está no fim, vejo Sarah chegar com cara de sono mas com a sua boa disposição de sempre...

— Como foi noite no clube?

— Igual ou seja insatisfatória!

— Continuo sem compreender como uma mulher linda como tu consegue ser tão azeda. - Não levo a peito as suas palavras porque sei onde quer chegar.

— Obrigado pelo elogio!

O meu telemóvel toca e o número da clínica onde Jonh está internado surge no visor, o que não é bom sinal...

— Senhora Santos lamento incomodar mas as notícias não são as melhores, infelizmente o seu pai acaba de falecer.

— Estarei aí em 30 minutos.

Arrumo as minhas coisas e saio dizendo apenas a Sarah que surgiu um imprevisto, nunca o fiz antes, não sou do tipo de pessoa que falha com as suas obrigações mas Jonh merecia o meu respeito. Tal como tinha dito estava lá em meia hora e tratei de tudo para o seu enterro, seria rápido e simples mas digno, passei um cheque para cobrir todas as despesas e fui para casa. Servi-me de um bom whisky e fiquei a pensar em tudo o que passei com o meu "pai", ele era o meu verdadeiro pai, não de sangue mas foi ele quem cuidou de mim desde os meus 16 anos. Um homem simples que nada tinha mas que salvou a minha vida, eu tinha apenas 15 anos quando fugi de um inferno chamado família, eu fugi de casa e apanhei todos os transportes que o meu dinheiro permitiu até ser noite e estar de rastos, parei num quiosque de jornais que estava fechado e lembro de me encolher e adormecer com fome e frio, acordei sentindo alguém agarrar-me, quase morri de medo do que aquele homem me poderia fazer mas ele simplesmente me deitou no seu saco cama para que eu dormisse confortável. Ele era um pobre coitado que só tinha aquele quiosque, dormia ali e não tinha como viver decentemente mas partilhou comigo o pouco que tinha e deu-me sobretudo amor. Comecei por ajuda-lo, para isso pegava em alguns jornais e ia vende-los para as escadas do metro decidida a ganhar mais alguns trocos, depois consegui entrar na escola pública com o objetivo de acabar os estudos mas de noite trabalhava a vender pipocas e doces na porta do cinema. Como sou batalhadora juntei dinheiro e comprei um fato e sapatos apresentaveis para poder entregar currículos e assim consegui emprego como empregada de mesa num restaurante de luxo, durante um ano guardei dinheiro de parte e consegui um contrato de trabalho aos 18 anos. A primeira coisa que fiz foi alugar um mini apartamento já mobilado, no dia em que levei Jonh lá e lhe ofereci um lar dizendo que era o meu presente para ele como forma de agradecimento, ele chorou muito,  nunca tinha visto alguém assim tão emocionado antes. Fiz tudo o que pude para lhe agradecer pelo carinho, batalhei muito para chegar onde estou e lhe dar uma boa vida, ele merecia e aliás se eu sinto esta coisa de irmã mais velha por Ellen é porque ele me disse uma vez que deveria dar a mão a essa jovem tal como ele me ajudou a mim. As palavras dele eram " favores em cadeia" tal como o filme...

— Já em casa? - Ellen entra e atira-se para o sofá.

— Jonh morreu e tive de tratar de tudo.

— Lamento muito Karry, ele era o teu pai embora que adoptivo mas sei como é difícil.

— Ele foi muito importante para mim e eu agradeço por tudo o que me deu mas aceito a sua perda e continuo a vida com as suas memórias.

— Às vezes a tua frieza é assustadora. - concordo com ela.

— Mudando de assunto menina Ellen, porquê que eu não sabia da existência desse tio?

— Ele esteve ausente em trabalho por dois anos mas agora regressou e eu estou feliz com isso porque ele sempre me protegeu muito. - Ela atira os ténis para o canto da sala sabendo o quanto eu desaprovo a desorganização.

— Isso quer dizer que vais querer viver com ele? - odiaria perder a minha companheira.

— Não nunca! - Ela tranquiliza-me de imediato - Em primeiro ele não tem tempo para estar comigo, tem uma profissão arriscada e ainda tem outra coisa... - Ela pega na sua sacola da faculdade e levanta-se - Eu adoro-te Karry mesmo achando que és um osso duro de roer!

Vejo ela rir quando a acerto com uma das almofadas que estão espalhadas no sofá, acho que tenho inveja da sua vida de adolescente que eu nunca tive, fecho os olhos e saboreio a bebida que já nem queima a minha gargarta como antes e dou o dia por encerrado, não vou à faculdade mas ligo para a Sarah e Parker o meu chefe para contar o que se passou mesmo que na segunda feira esteja de volta como sempre. Na hora do jantar decido esclacer algo que Ellen disse esta tarde...

— Hum este pato com laranja está muito bom!

— Obrigado Ellen, agora eu gostaria que me respondesses algo...

— Pronto diz lá Kerry! - Ela é tão espontânea e isso eu admiro muito, é uma das suas imensas qualidades.

— Qual é a profissão do teu tio Scott?

— Ele diz que é segurança privado mas na verdade eu acho que há mais alguma coisa, eu não sei mas ele tem demasiado dinheiro para um simples segurança.

— E os outros dois armários? - Eles eram grandes mesmo.

— Bem Kevin é rebelde, lindo e ficou de olho em ti!

— Não estou interessada, continua...

— Adam é o homem que faz sentir borboletas no estômago mas que nem nota a minha presença, eles são como filhos para o meu tio.

— Isso não é verdade ele olhava para cada movimento teu!

— Ele tem 26 anos e eu 19! - Ela fica corada só de falar nele, que fofa.

— Qual o problema Ellen?

— Ele tem uma namorada nova a cada semana e o meu tio matava-o se ele sequer me tocasse.

— E eu também, quer dizer se ele te fizesse mal.

— Karry podias ajudar-me com isso. - Ela diz como se tivesse surgido uma ideia brilhante.

— Ajudar no quê?

— A fazer com que ele olhe para mim, amanhã o meu tio vai dar um dos seus famosos jantares com os amigos e tu podias ir comigo e ajudar-me com a roupa e assim. - Até parece que sou esse tipo de mulher.

— Eu ajudo e levo-te lá mas só isso!

— Karry... - Ela ajeita-se na cadeira com ar de quem preparou algo - Eu já disse ao meu tio que ias comigo!

— Não!

— Mas é o meu aniversário! - Ela diz com um pouco de mágoa pelo meu esquecimento.

— Desculpa princesa mas eu não sabia, por isso retiro o que disse, como tu mesma disseste eu sou uma pedra de gelo. O que queres fazer amanhã?

— Bem como a minha mãe e o meu tio não se falam eu vou almoçar com ela e depois volto à tarde para irmos para a festa.

— Óptimo assim tenho tempo para preparar surpresa. - Terei de pensar em algo diferente.

— Adoro surpresas!

Kerry (Completo Na Amazon)Where stories live. Discover now