PARTE I

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— Onde você vai? Aconteceu alguma coisa? — perguntou Minerva olhando a colega com atenção.

Luzia estava visivelmente irritada. Seus cabelos azuis, pouco abaixo do queixo, estavam desgrenhados, como se a garota tivesse tentado os arrancar diversas vezes. Os olhos amarelos também encararam com fúria aquela que lhe dirigiu a palavra:

— Não consigo mais! Já tentei passar a intensidade que queria de várias maneiras. Mas não dá certo! Não aguento mais! Aqueles olhos não saem da minha mente e não sei como aliviar isso.

A garota nas suas quase duas décadas de existência jamais vira um homem em toda a sua vida antes do dia anterior. Agora a imagem de um deles a encarando com olhos negros aterrorizantes não lhe saia da cabeça. Mal dormiu aquela noite, pensando no ser estranho que a encarou durante breves segundos.

— Preciso de um novo propósito de vida! Estou cansada de fazer as mesmas coisas!

Disse isso e saiu pela rua, andando sem um destino certo. Quando se deu conta, Luzia já estava próxima do local que visitara na tarde anterior. O local onde conhecera o ser inferior dos olhos negros e cabelos azuis.

Se esgueirou pela pequena mata, tomando cuidado para dessa vez se manter escondida dos seres inferiores e ficou observando de longe os homens trabalhando. A aparência deles ainda a surpreendia. Eram muito semelhantes a elas.

Sempre ouviu falar que homens eram seres diferentes, perigosos e com muito menos capacidade mental, o que os tornava inferiores. Em sua mente, imaginava seres baixinhos, com cabeças pequenas e características assustadoras. Mas na verdade, o que via eram pessoas como elas, com seus cabelos coloridos, olhos nas mais diferentes nuances e peles nas mesmas tonalidades que as delas. O único aspecto que diferia eram as vestimentas. Luzia usava uma jaqueta de couro azul-marinho por cima da blusa vermelha e da calça amarela, enquanto os operários em sua frente vestiam todos um macacão cinza idêntico.

Luzia procurou no grupo de homens, o que havia visto no dia anterior. Apesar da semelhança entre as vestimentas cinzas, havia algo que o tornava inconfundível. Manteve sua atenção nele, enquanto aguardava. Algumas horas depois, o rapaz se aproximou de onde ela estava para realizar uma de suas tarefas e Luzia não perdeu tempo e o chamou:

— Psiu!

Ele se virou em sua direção e como no dia anterior a encarou. Ela fez um gesto para que lhe seguisse. A menina esperava que o ser compreendesse o que significava e viesse atrás dela.

E não demorou muito para que ele estivesse em sua frente, lhe analisando da cabeça aos pés.

— Quem é você? — perguntou.

Ela arregalou os olhos antes de responder:

— V-você fala-a?

— Sim. Eu e todos os outros — seu olhar desceu dos cabelos azuis de Luzia até a ponta de seus calçados. A menina sentiu o corpo tremer e ponderou se deveria correr para longe — Dizem para vocês que não sabemos nem falar?

— Não dizem nada sobre vocês — foi capaz de dizer, controlando o medo da voz —, apenas que são seres inferiores e por isso não merecem a liberdade.

— E então o que veio fazer aqui?

— Não sei.

— Não sabe? — ele riu — Então por que me chamou?

— Também não sei — a menina desviou os olhos para o chão. O olhar negro era intenso demais.

O ser inferior deu mais uma risada de desdém e revirou os olhos:

— Já que é assim, preciso ir trabalhar por mais quatro horas para que você e as outras possam desfrutar do que quiserem e serem felizes as nossas custas. Até mais.

E ele foi pelo mesmo caminho que viera. O rapaz dos cabelos azuis e olhos escuros estava já distante quando Luzia gritou:

— Espera! Vocês têm um nome? Qual é o seu?

Ela já acreditava que ele não havia escutado ou que não responderia quando o ouviu gritar em resposta:

— Gustavo. Meu nome é Gustavo.

* *

Luzia passou o resto do dia e toda a noite pensando em Gustavo e na conversa que tiveram. Mais do que antes, ela estava impressionada. E dessa vez não era pela expressividade do olhar dele ou qualquer coisa do tipo. Estava espantada porque lhe pareceu alguém normal. Era semelhante a uma mulher nos mais variados sentidos: pensava e falava como tal. E possuía até um nome!

Refletia sobre isso o dia todo, sem saber o que fazer com a experiência. Era a única que conhecia que havia conversado com um ser inferior. Como deveria agir? Contar a todos? Espalhar que eles não eram seres malignos como ela imaginava? Ou ela ter invadido a sociedade inferior e falado com um deles era crime?

Não deveria ser errado. Não pela facilidade com que passou de uma sociedade para a outra. Ambas as sociedades deviam se temer e por isso se mantinha distantes. As mulheres temiam as histórias aterrorizantes sobre os homens serem agressivos e eles temiam a superioridade delas. Afinal, as mulheres eram poderosas e poderiam fazer o que desejassem.

Mas Gustavo não pareceu amedrontado ao falar com ela. Ele pareceu normal. E isso só fazia a curiosidade dela aumentar ainda mais.Precisava de mais respostas, de mais explicações. E era isso que faria. Já sabia o que fazer com aquela experiência: a reviver mais uma vez e descobrir mais coisas.     

A Liberdade que Limita - ContoDonde viven las historias. Descúbrelo ahora