PARTE II

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— Podemos conversar? — perguntou Luzia a Gustavo. Os dois estavam no mesmo local que se encontraram no dia anterior. Ele vestia seu mesmo uniforme, e havia sido interrompido em seu serviço.

— Tenho que trabalhar pra produzir as coisas para vocês — apesar da cara fechada e dos braços cruzados em frente ao peito, os olhos negros dele eram curiosos.

— Quero conhecer mais sobre vocês. Acredito que nós temos uma visão errada do que são os homens e queria acabar com esse preconceito.

— E como pretende fazer isso? — ele forçou uma risada — Se gabando para todos que conversou com um de seus escravos?

— Não! Só quero que me conte. Preciso saber. Desde nossa conversa ontem, percebi que tem muitas coisas erradas. E se há uma maneira de consertar é conhecendo melhor vocês e entendendo como são.

Gustavo ponderou por alguns instantes. A menina excêntrica em sua frente parecia ser sincera. Mas ele não tinha como ter certeza. Conhecia a fama que as mulheres tinham de enganar e iludir. De qualquer forma decidiu arriscar. Não tinha nada a perder:

— Me espere aqui por mais três horas e meia. Aí acaba meu turno e poderemos conversar.

Três horas e meia depois, Gustavo voltou. Algo lhe dizia que a garota não estaria mais lhe esperando, mas, mesmo assim, foi até o local combinado. Contrariando suas expectativas, ela estava lá, sentada no chão encolhida e amedrontada. Já era noite e não podiam enxergar alguns metros à frente. Estar tão perto dos seres inferiores, no escuro e indefesa foi terrível para Luzia. As horas se arrastaram e o tempo que esperou pareceu ser de dias inteiros. Mesmo assim, sua curiosidade e necessidade por respostas falaram mais alto.

— Vista isso aqui — Gustavo disse assim que a encontrou, lhe alcançando um uniforme cinza idêntico ao dele.

Luzia vestiu por cima da própria roupa sem objeções.

— Venha comigo — o garoto falou mais uma vez, puxando ela pelo braço em direção a fábrica.

— Para onde vamos?

— Não quer conversar? Vamos conversar e você vai ver com seus próprios olhos como vivemos.

— E por que eu tive que colocar isso aqui? — apontou pro macacão.

— Suas roupas coloridas iam chamar muita atenção.

Passaram pela indústria que Luzia já havia visto de longe e seguiram por mais alguns minutos até chegarem à cidade. O local também era diferente do que ela estava acostumada. Na sociedade superior os prédios possuíam alturas e larguras variadas, assim como formas diferentes. Ali eram todos padronizados, não só pelo seu tamanho, como também pelas disposições das janelas e as fachadas no geral. A cidade de Luzia, assim como ela, era colorida, cheia de luzes, outdoors e brilhos. A de Gustavo era monocromática.

Havia muito lixo e sujeira jogados no chão. Fedor de urina e coisa estragada emanava de cada esquina. As ruas estavam desertas e pouco iluminadas. Poucos estabelecimentos estavam abertos nesse horário, e os poucos eram lotados por homens que conversavam alto, davam risadas espalhafatosas e às vezes até brigavam. Luzia via tudo aquilo e abominava cada vez mais o local. Era tão diferente de onde vivia. Sentia que a cada passo que dava corria mais perigo, e não voltava correndo por onde viera porque não lembrava o caminho e a noite ficava cada vez mais escura.

Foi com alívio que viu Gustavo fazer um gesto para que entrassem em um dos edifícios. Chegaram ao apartamento dele. Dentro do pequeno ambiente havia apenas os móveis essenciais, todos muito velhos e gastos. A parede tinha pintura descascada e o forro estava caindo.

A Liberdade que Limita - ContoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora