Conto 3 - Confiança é Tudo (Ricardo Félix)

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Autor: Ricardo Félix

Música-tema: Lulu Santos - Não acredito

Classificação: Livre

Sinopse: O solteirão Davi se vê forçado a compartilhar sua intimidade com Janete, a diarista que faz a limpeza do seu apartamento. A relação entre os dois não é nada amistosa, pois ele a considera invasiva e incompetente. Pelo menos até um acontecimento trágico marcar as vidas desses dois.

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Enquanto Davi tira as meias da máquina de lavar para estendê-las, se pergunta "Pra onde será que vão as meias que somem? E por que nunca somem aos pares? Por que sempre há um pé que teima em ficar para se tornar prova do desaparecimento do outro?" Naquela manhã estava em casa, só trabalharia à tarde, então teria "o prazer" de ficar na companhia de Janete sua diarista semanal. A relação entre eles não era muito amistosa. Janete não limpava bem, mas adorava se intrometer na decoração. Sempre dava uma inclinada no vaso do arranjo pra dar um toque feminino, mas o quadro na parede tinha que ficar torto. A primeira ação de Davi ao chegar era endireitá-lo, acertá-lo pela linha do teto. Quando o quadro estava no lugar era pior, porque aí ele tinha a certeza de que ela não havia limpado. Passava então o dedo que saía preto de poeira. A diarista adorava fazer perguntas óbvias, para as quais ela já sabia a resposta, só pra sondar, xeretar ou criticar veladamente. "Seu Davi, e essas garrafas todas?! (ênfase no todas) É pra jogar fora?" Também havia as perguntinhas indiscretas: "Ih! Os lençóis estão molhados, Seu Davi, posso botar pra secar?" Ou até achados arqueológicos: "Seu Davi, achei esse brinco lá embaixo do sofá." Certo dia, Davi acorda com a cabeça explodindo da ressaca, depois de uma noite tumultuada com briga por ciúme seguida de reconciliação com direito a sexo selvagem no fim. O saldo da noite foi bom, mas a ressaca péssima. Então Janete sai do quarto trazendo na ponta dos dedos uma calcinha de renda que estava jogada sobre o abajur. "Seu Davi... "Antes que ela continuasse, ele interrompe, seco, deixando claro que o próximo passo seria um cruzado no queixo: "Deve ser da minha mãe!" Encarando fixo Janete, esperando alguma reação ou comentário. Ela percebeu que naquele dia deveria evitar as gracinhas "Vou botar no cesto."

As queixas dele, no entanto, não paravam por aí. De vez em quando, Davi acendia umas velas nos seus tratos incomuns com Deus e junto, no alto de um móvel, ficava o incensório. Acender incensos para Davi não tinha nenhuma razão espiritual e sim aromática. Janete, evangélica, despejava o incensório com uma cautela, como se aquelas fossem as cinzas do próprio capeta, se ele pudesse ser cremado é claro. Falta de atenção também era uma especialidade sua. Quando ela recolhia os livros da estante para tirar o pó, eles voltavam como que embaralhados por um bookmaker. Se no serviço, Janete deixava a desejar e no quesito "empatia", aí é que a coisa desandava mesmo, por que então Davi a mantivera por mais de cinco anos? "Por que era de confiança", ele respondia para si mesmo quase todo dia após verificar o resultado da faxina, para se convencer do motivo. Mas confiar não era fácil nem espontâneo para Davi. A necessidade fez com que ele, dois anos trás, se visse forçado a deixar as chaves do apartamento com ela. Naquele ano trabalhava os três turnos. Ficou rico, há quem pense, mas não. Era professor. Com a sobrecarga de trabalho via a sujeira se acumular pelo apartamento. Até então, Janete só limpava quando ele estava em casa e como Davi ficou sem folgas durante a semana, isso só acontecia um sábado por mês. Resultado: Crostas no fogão, pilhas de louça na pia, bolos de poeira, soprados pelo vento, rolavam na sala como bolas de capim seco no deserto do Arizona, deixando Davi louco. Ele sentia saudade da casa limpa no tempo da mãe. O chão era tão limpo que dava vontade de se deitar nele. Com a diarista teve que se conformar em ter que limpar os pés antes de subir na cama. Sabia que o padrão de limpeza da mãe seria inatingível até para ele próprio executar, principalmente, se quisesse ter alguma vida social em vez de se tornar um escravo da faxina. Quando Janete fazia aquela limpeza semanal "meia-boca", pelo menos, a casa ficava habitável. Davi se viu forçado a entregar a chave. Se sua mãe soubesse diria "Deixar a chave com uma estranha?! Você é louco! Depois não reclame se chegar em casa e encontrá-la vazia!" Ele não tinha escolha. Os meses se passaram e ele não dava falta de nada. Certa vez até "esqueceu" algum dinheiro sobre o móvel, para ver se sumia, mas não sumiu. Ele foi relaxando. Depois de dois anos com Janete tendo acesso ao apartamento quando ele não estava, Davi já se sentia um pouco mais seguro.

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