Capítulo Um - Brigas com o relógio

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Os ponteiros do relógio na parede oposta a minha parecem andar cada vez mais devagar. Por algum tempo, eu implorei para que o tempo parasse e me mantivesse naquele momento por mais algumas horas, dias, semanas, meses. Mas o idiota do tempo nunca pareceu ouvir meus pedidos.

E, agora, quando eu quero apenas que o mundo continue girando e girando e girando até perder o controle, ele reduz a velocidade. Sério mesmo que agora você disputa corrida com uma tartaruga e pretende perder?

Deixo o resto do meu café esfriar na caneca de porcelana da cafeteria para atentar-me aos meus e-mails. Promoções de lojas que eu nem lembrava ter comprado, spam, avisos do curso. Meus amigos não me mandam e-mails desde que os aplicativos de mensagens instantâneas surgiram em nossos celulares.

Talvez eu ainda abra o meu e-mail porque guardo tradições antigas que meu corpo não consegue se livrar. À moda antiga sempre, Laura. Minha alma tem atração por tudo aquilo que parece velho e guardado no fundo de uma caixa que passa de geração em geração e ninguém se atreve a ouvir.

Assim como eu, essa cafeteria guarda uma tradição antiga. Um sino sobre a porta, fazendo barulho toda vez que algum cliente entra ou deixa o estabelecimento. É natural, meus olhos se levantam para o estranho e desviam segundos depois, quando não encontram nada de interessante.

A cafeteria está lotada – coisa incomum para uma quarta à tarde –, mas eu culpo os turistas que chegam aos montes para a temporada de inverno. Eu não posso mentir, Vancouver é uma cidade muito atraente em qualquer época do ano. Adolescentes de todos os cantos do mundo lotam as ruas e parques durante os verões e retornam aqui no inverno, que não é tão frio, mas pode ser tranquilamente chamado de inverno. Eu vejo muitos casais nessa região quando as temperaturas começam a cair porque talvez esse seja o programa ideal para duas pessoas - o verão torna as pessoas mais individualistas.

Meu casaco vermelho dá conta das temperaturas mais baixas. A roupa que as pessoas ao meu redor entregam o frio que estão sentindo, logo entregando que não são da região ou acostumados com esse clima. Os rostos de uma mesa de adolescentes falantes e escandalosos estão corados, eles parecem estar congelando mesmo com o aquecedor aqui dentro. Tento reconhecer a língua que falam e fico entre italiano ou espanhol.

O sino da cafeteria chama a minha atenção, meus olhos rapidamente fogem dos e-mails incrivelmente chatos para o novo cliente. Sua jaqueta preta faz com que ele destoe das paredes envelhecidas e combine com a cidade lá fora. Ele tira as luvas enquanto sobe as escadas da entrada e se aproxima do balcão com uma face de indecisão.

Deixo meu notebook de lado e provo do meu cappuccino. O estranho não repara a atendente em sua frente até se decidir. Leio seus lábios, guardo detalhes do seu sorriso e tento captar sua voz. No entanto a mesa de adolescentes me impede que eu foque no que ele pede.

Olho ao redor. Que ótimo dia para a cafeteria estar lotada. Meu coração palpita com a ideia de que ele possa acabar se sentado na cadeira a minha frente. Puxo meu notebook mais para perto, me perguntando se devo ou não guardá-lo na mochila.

Meu cappuccino, antes quente, encontra-se morno. Mas não perde o sabor que tinha quando o provei assim que o barista me entregou alguns minutos atrás. Não guardo o meu notebook porque divido minha atenção entre a minha área de trabalho e o cliente destoante. Ele se aproxima da área de entrega dos pedidos e meu corpo se enche de arrepios quando vejo-o segurar uma caneca de porcelana.

Não consigo ver se há algum lugar vazio na entrada do estabelecimento porque os adolescentes estão eufóricos, alguns comemoram algo dando pulos e apenas uma garota não parece feliz com isso.

Uma jaqueta preta invade meu campo de visão e eu retorno ao estabelecimento.

– Tem alguém sentado aqui? – o cliente misterioso olha nos meus olhos e sorri.

– Não, não tem - sorrio de volta e observo-o sentar-se de frente para mim.

Os olhos azuis que ele tem sequestram a atenção dos meus, castanhos e comuns. Ele parece distraído com a fumaça do seu café puro. Eu ganho alguns segundos para observar seu cabelo levemente dourado cair em seu rosto e ele ajeitá-lo para que os fios voltem a ficar penteados corretamente.

– Por que crianças precisam ser tão barulhentas? – ele olha para os adolescentes por cima do ombro e me encara.

– Elas ainda não sabem que controlar os sentimentos é a melhor coisa que poderão fazer ao longo da vida adulta. – Dou de ombros.

– Eu gosto de como você fala – os lábios dele não são como nada que eu tenha visto antes. Eles parecem até moldados para ter a leve semelhança com um coração repuxado. Me atento ao jeito como ele solta as palavras no ar.

– E eu gosto do seu sotaque. – Ele sorri com meu comentário. – Deixe-me adivinhar. Britânicos são mais cordiais, então eu aposto que você é australiano.

– O que você é? Uma vidente? Sim, eu sou australiano.

– Obrigada atores de todos os lugares do mundo.

– Você é uma local?

– Pode-se dizer que sim – finalizo o meu café e tento parar de sorri.

A adrenalina de conversar com um estranho corre nas minhas veias depois de muito tempo em um ambiente conhecido. A última vez que eu vivi isso foi há dois anos, no primeiro dia da faculdade. Agora, com meus amigos e alguns conhecidos em todos os cantos, eu só me sinto assim quando esbarro com um calouro e ele precisa de alguma informação.

– Passando férias aqui? – pergunto para acabar com o silêncio entre nós dois.

– Meio de férias, meio trabalhando.

– Interessante.

– O que você estuda? – ele aponta para o meu notebook.

– Literatura inglesa – abaixo a tela do meu notebook. – Sim, eu vou acabar ensinando inglês para crianças e adolescentes, e quem sabe depois de um mestrado, eu lecione em faculdades.

– Ser professor não é algo ruim, até porque todo dia a gente aprende alguma coisa nova com as aulas da vida. – Ele desvia o olhar e eu rio com o que ele disse.

O celular dele toca, ele o atende e fala algo que eu não consigo compreender por conta do seu sotaque. Quando desliga, parece um pouco decepcionado.

– Emergência do trabalho?

– Você, com certeza, é uma vidente. – Ele sorri e tira um pedaço de papel do bolso. – Tem uma caneta?

Abro a minha mochila e entrego a primeira que encontro perdida. Ele anota algo nesse papel, dobra-o, termina seu café e olha ao redor.

– Eu preciso ir, mas se você quiser continuar conversando - e me entrega o papel.

– Obrigada.

Ele se levanta e vai embora antes mesmo que eu consiga perguntar seu nome ou dizer o meu. O sino na porta indica que ele se foi, caminhando pela calçada e olhando para mim através da janela de vidro.

Volto a encarar o relógio. Passaram-se quinze minutos desde que ele entrou, pediu seu café, se sentou e foi embora. E, na minha mente, pareceu uma eternidade.

Por que o tempo voltou a correr quando eu estava começando a me acostumar com seu ritmo lento?

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