Fantasmas do passado e do presente

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E foi assim que eu a conheci... estava a andar de um lado a outro de minha biblioteca pessoal... chovia do lado de fora da janela e em breves vislumbres pelo vidro eu podia ver as pessoas patéticas, como sempre, em seus afazeres insignificantes. Não estava com fome, e sem a necessidade de caçar não vejo motivo para sair. Buscava o mínimo de distração para uma noite absurdamente tediante.
Já li tudo que se tem para ser lido nestas prateleiras e a muito esqueci o que é se agradar de fato com uma leitura... na verdade... a muito não sei o que é se agradar com nada. Mergulhado em meus pensamentos, observava a lareira crepitar e as páginas dos vários livros abertos em minha mesa. Acabo, melancólicamente, por retornar ao passado. Vasculhando os pontos mais distantes da minha memória...

"Era uma noite fria e chuvosa como esta na velha Londres... sinto sua falta... eu andava pelas ruas escuras, como de costume sozinho, voltando do meu trabalho. Tinha sido um dia tão longo... tantos papéis e estranhos casos... eu me lembro de como estava ventando. Em Londres sempre está chovendo e eu odiava aquele clima. O cheiro de fuligen e dejetos tomava o ar, meu casaco já estava encharcado e isso favorecia o frio que já atravessava meus mantos como adagas de gelo. Eu só queria chegar logo... mas ouvi os sons vindos daquele beco. Eu tinha que olhar... claro que eu precisava olhar. Acredito que de todos estes longos anos, em tantas decepções e insatisfações... Aquele foi o momento do qual mais me arrependo. Minhas mãos tremiam e minha mente girava em meio a tantas possibilidades do que poderia estar acontecendo. Ah... quanto tempo não sei como é sentir medo, não que de fato sinta falta dele... mesmo sentindo tanto medo eu fui. Era um homem tão curioso. Nunca vou me esquecer daquela sensação de confusão e angústia... Aquele arrepio em minha espinha... o tremor de meus membros e aquele sinistro par de olhos azuis... foram os sentimentos mais intensos que já tive e também... a última vez em que senti qualquer coisa."

  Sou acordado de meus devaneios por um irritante e incessante "toc toc". Vou em direção a porta da frente irritado - quem me perturba?- não é de meu costume ser mau anfitrião... a final sou britânico! Mas seja quem fosse havia chegado em uma hora ruim. Novamente eu pergunto e nada de resposta. Então abri a porta de maneira abrupta e a vi. De imediato meu semblante impaciente torna-se totalmente aborrecido
- você deveria estar morta...
A expressão de confusão misturada ao medo em seu rosto era tão nítida que por um momento cheguei perto de ter pena.
- o que está acontecendo comigo?-seus grandes olhos estavam marejados e avermelhados, sei que isso é o mais próximo que um de nós chega de um choro.
Eu a puxei para dentro e fechei a porta
- Como você chegou aqui ?
- eu não sei !- ela tremia e gaguejava como uma criança- apenas sabia que deveria vir para cá
Eu esmurrei a parede do hall de entrada e, posso não ter percebido, mas já perdia o controle. Um buraco fica a frente de meu punho e ela se encolhe de medo. Busco me acalmar respirando fundo, como se realmente tivesse ar em meus pulmões, e digo
- tudo bem... eu sei pelo que está passando e imagino que haja muitas perguntas a fazer
Ela ainda treme e nada fala... então eu vou em direção a biblioteca novamente e ela me segue
- foi você não foi? - ela finamente fala
- eu ?
- você que eu vi na rua aquela noite... o último rosto que me lembro
Não consigo deixar de sorrir sarcasticamente diante da ironia na situação. Ela parecia relativamente calma demais
- sim... devo dizer que infelizmente posso ter cometido um erro... e agora estamos aqui
- por que ?
- sente-se... vou tentar explicar isso da melhor forma, mas primeiro vou te arrumar alguma coisa mais elegante  que essas roupas de hospital

Crônicas Da Meia Noite Where stories live. Discover now