A estranha conversa com meu assassino

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Ele me puxou para dentro. Por um instante achei que estivesse tão confuso quanto eu, mas logo voltou a sua postura normal. Tranquilo e incrivelmente paciente com cada palavra dita. Teria me encantado com sua postura nobre se não fosse o pequeno buraco que deixou na parede com seu punho. Isso me deixou confusa, mas depois do que fiz aquela noite, nada mais me impressionava da mesma forma.

Ele me levou até uma espécie de biblioteca dentro da própria casa. Eram tantos livros que me deixava cansada só de olhar. Ao arrastar uma cadeira o homem falou

- sente-se... vou lhe explicar isso da melhor forma possível, mas antes vou lhe arrumar algo mais elegante que essas roupas de hospital

E ele o fez... voltou em alguns minutos com um conjunto completo de roupas. Não perguntei por que ele tinha roupas feminas em sua casa já que aparentemente vivia só... apenas fui até onde ele me mostrou ser o banheiro e tirei todo aquele sangue do meu corpo. É indescritível a sensação de simplesmente não sentir nada. Eu sabia que estava cheia de sangue, mas não me enojei, não me importei. Me lavei por saber que estava suja, mas não senti o toque da água em minha pele, não sentia calor nem frio, não sabia se as luzes estavam acesas ou apagadas, simplesmente enxergava. Isso era de certa forma tão libertador que por breves momentos esqueci que estava na casa de meu provável assassino. A memória era algo confuso...

Quando sai ele já me esperava e indicou que eu me sentasse em frente a ele na escrivaninha da biblioteca, e assim eu fiz. Ele tinha um jeito formal de se movimentar que eu estranhei. Entrelaçando os dedos sobre alguns dos livros ele começou

- devo imaginar que a essa altura você já deva estar com a mente menos embaçada...

- na verdade estou um pouco confusa

- na sua primeira noite isso é mais do que compreensível... só espero que entenda antes de eu explicar. Não era Minha intenção que isso acontecesse

- isso? Então realmente foi você... encontrei-o aquela noite

- sim... infelizmente você está morta e eu sou o culpado

As palavras vieram para mim como lâminas ao peito... pensei em me levantar e agredir-lhe com minha nova força, pensei em virar a mesa e gritar o por que de fazer isso, mas todo este turbilhão de pensamentos e sentimentos duraram menos de um mísero segundo. Como uma rocha fria e dura eu então larguei a beirada da mesa de madeira, que havia amassado pela breve raiva, e o encarei com expressão vazia... vazia como a dele.
- por que ?

Ele então prosseguiu olhando para a mesa e minhas mãos
- fique tranquila... uma coisa que posso lhe prometer é que vestígios de seus sentimentos logo serão cada vez mais raros...

- vestígios de sentimentos... - era como se ele estivesse olhando dentro de mim... e cada vez mais isso me gerava estranheza e encantamento." Como é possível? Eu deveria odiar ele "

-sim... tudo o que está sentindo será apagado pela noite... agora você é filha dela, como eu, uma cria da noite e lamento que isso tenha lhe acontecido... de verdade

Estava tudo girando de novo. Por que ele falava de maneira tão confusa ?
- seja mais direto... por favor. Por que me matar? Por que eu?

- eu não posso dizer que a escolhi de fato... fora apenas um terrível azar para ambas as partes

- não vejo como você está prejudicado nisso!

- acredite, isso vai ser tão difícil para mim quanto para você... a final, agora sou seu criador e você é uma infeliz responsabilidade

Ele me irritava drasticamente
- meu criador?! Responsabilidade uma ova... me diga por que vim para cá e como faço para voltar pra minha casa e fazer tudo isso desaparecer

Ele sorriu ironicamente
- a muito tempo não via um recém criado... me encanta vocês serem tão parecidos entre si.- ele se levantou e puxou um livro de suas prateleiras pondo junto a muitos outros na mesa
- isso não vai passar... e você nunca mais poderá ir para casa, criança.

- criança? Olha aqui! Você não pode me prender

Ele continuou sorrindo
- não! E não irei lhe aprisionar... mas você mesma preferirá não ir e sabe o porquê... você não pode ir até aqueles que ama ou irá acabar matando todos eles...

- seu maluco! Eu vou embora- me levantei e ouvi pelas costas seus riso

- já está pensando nisso... não é mesmo? O sabor do sangue já esteve em sua boca

Ele estava certo... ao lembrar de todos que conheci tive uma triste sensação de estar pensando em estranhos... ou pior, em fome. Pus as mãos no rosto aguardando um choro que não veio e então me sentei de novo

- fale tudo que tem a dizer... eu quero que isso acabe logo- falei, mas apenas para ser apedrejada novamente por palavras que me confundiam e entristeciam

- pequena... esse é apenas o começo

Eu não estava apta a debater. Estava claro que ele iria continuar a me confundir se eu continuasse a permitir que isso acontecesse com tentativas de reputar o que falava... então eu parei e respirei fundo, ao menos pensei ter respirado, e deixei que ele falasse.

- como já disse... somos o que os antigos dentre nós chamavam de crias da noite. Muitos poderiam ver o que nos aflige como uma bênção, ser tão forte, ser tão rápido, ter o domínio de todos os domínios, sentidos e dons da noite... não envelhecer...  mas lhe adianto que a triste e torrida verdade é que somos amaldiçoados.- ele detinha uma expressão tão triste e dura que era possível perder a noção de que era um rosto de vinte e poucos anos. Me fazia sentir encarando um idoso amargurado.

- então você me amaldiçoou... já lhe perguntei, mas não me nego a repetir. Por quê?

- é... como falei anteriormente, não foi uma escolha minha, acredite, a última coisa que queria era criar alguém. Mas cometi um erro- ele se endireitou na cadeira parecendo mais tenso- não são todos que podem ser dignos do dom da noite. Parte do que eu tenho me permite saber quando alguém será ou não transformado, mas é uma grande tristeza descobrir após tantos anos que posso falhar...

Eu estava começando a compreender, mas seria muito difícil aceitar. Eram tantas coisas de repente. Eu não era mais humana, não era mais eu mesma. Possuir minhas memórias, mas não meus sentimentos, nao mais meus questionamentos. Eu era apenas uma sombra.

Ele não me deixou pensar. ergueu o livro que pegou e me mostrou antes de por na mesa novanente
- talvez ache esclarecimento nisto... Mas por agora venha, tenho coisas a lhe mostrar

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