Despertar

9 0 0
                                    



- Eu preciso te contar uma... coisa. Eu preciso por mim, estou sendo um pouco egoísta, ao mesmo tempo que tenho medo de te dizer. Sabe? Eu...eu estou com medo. - A voz de Janaína estava trêmula.

- Tudo bem, estou aqui com você. Eu sei que nos conhecemos há poucos dias, mas eu quero ser sua amiga, quero te ouvir. - Maria deu um abraço manso em Janaína e depois afastou-se para ouvir o que ela tinha para dizer.

- Eu não vim pra cá a toa, eu realmente não tenho para onde ir. Eu paguei o festival com um dinheiro que tinha guardado, e depois não sei mais o que fazer.

- Como assim? Me conta direito essa história!

- Eu vivi alguns anos com um homem... no começo estava tudo bem. Aos poucos fui perdendo minhas amigas, ele foi me levando para longe dos meus parentes, meus pais. Todos falavam e eu não acreditava, eu achava que amava ele, mas hoje sinto que ele só me fez depender dele a ponto de pensar que... que eu não poderia ser ninguém, que eu era um nada. - a lágrima caía, e as palavras saíam rasgadas entre os soluços.

- Calma, vem aqui, respira. Quer água?

- Não quero, eu vou terminar, isso está me matando. - respirou profundamente.

- Tudo bem.

- Como eu disse, os primeiros meses foram incríveis, tudo passou muito rápido. Fui morar com ele, depois nos mudamos para longe dos meus pais... Bem, continuando. Uma amiga chegou a me dizer que viu ele me traindo, e eu apenas enlouqueci. Mas quando cheguei pra brigar com ele, ele me disse que era mentira, que ela que dava em cima dele e queria que nosso relacionamento acabasse. Depois jogou a culpa pra cima de mim, como ele sempre fazia. No fim disse que se quisesse largar dele eu poderia, mas que eu nunca teria nada, que eu não sabia fazer nada sem ele, e que só ele seria capaz de me querer. Ele chegou a dizer com essas palavras "ninguém vai querer isso", isso, isso... Eu acreditei, acreditei que eu era, não alguém, mas algo.

- Você estava sendo manipulada, não se culpe.

- Eu fui burra, é a verdade.

- Não diz isso... - a voz de Maria se entristeceu, o peito dela doía ao ouvir tudo aquilo, mas a sua dor era nada, então engoliu e continuou a ser apenas "ouvidos".

- E depois disso as coisas pioraram. Veio a centésima briga, e depois disso o primeiro tapa, o primeiro apertar no meu pescoço... E cada dia era pior. Ele me batia, depois se desculpava. Abusava de mim, depois me chamava de frígida. Ele não me deixava ser independente, eu deixei tudo por ele, deixei meu emprego. Passei a ser dona de casa, cuidar da casa dele, fazer pequenas encomendas escondida, enquanto ele não estava em casa. Eu queria guardar um dinheiro pra caso precisasse. Mas um dia ele descobriu, pegou um faca e disse que se eu queria ser livre, que eu ia ser, mas morta.

- Meus Deus! Que história.

- Está quase acabando...

- Não se apresse. - Maria falou baixinho.

- Eu disse que ele não tinha coragem. Ele pegou a faca e matou minha cachorrinha, Brisa. Antes que eu pudesse reagir, chorar, gritar... Ele correu atrás de mim. Eu corri também, peguei um enfeite que tinha em uma mesinha de centro, acho que feito de pedra, algo assim e sem pensar muito, joguei nele. Ele caiu no chão desmaiado... Depois disso eu fugi. Fugi, dormi em um gramado, fui expulsa, fiquei sem rumo... e agora estou aqui.

- O que você precisar eu te ajudo, o que você precisar. Agora você está livre dele.

- Eu tenho medo dele me encontrar, mas meu maior medo é dessa falsa liberdade que agora tenho, eu não sei ficar sozinha, eu não sei ser amada, mas também não sei ficar só. A minha vida deu uma reviravolta muito grande, de forma instantânea. Primeiro eu achava amar alguém, depois percebi que o amor era na verdade medo, e fugi. Todas as reações possíveis e pensamentos aconteceram em uma fração de segundo.

Os olhos de Maria Rosa se aprofundaram aos de Janaína. Ela ouvia cada frase que saia da boca, cada lágrima que escorria nos olhos e deslizavam a face, sentia profundamente por todo o passado que rasgava o peito de Janaína:

- Maria, eu nunca vou encontrar ninguém, não vou.

- Você passou por um relacionamento abusivo, Janaína. É esse pensamento que seu ex quer que você tenha.

- Eu não consigo imaginar alguém me amando. Não consigo me amar como eu me amava antes dele.

Maria Rosa sorriu e cantarolou baixo um trecho de Elis Regina, esperando não ofender a ninguém, nenhum fã, mas só expressar o que dentro gritava "você diz que depois dele não apareceu mais ninguém ... Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem...".

- Você se parece um pouco com ela, sabia? - Janaina arriscou um elogio

- Eu? Imagina, quem dera...

- Se parece sim. O cabelo, o sorriso maravilhoso que traz paz...

- Eu me inspiro nela.

- Eu tenho me inspirado em você.

- E o que eu tenho que possa inspirar você? - Maria corou um pouco as maçãs do rosto, passou a mão na nuca e abaixou rapidamente a cabeça.

- O novo, Maria, o novo. Você me inspira a florescer, a ser fênix.

- Que bonito isso, que bonito de se dizer.

- Eu acho que ando lendo demais, não se fascine por tudo que eu digo.

- Eu não me fascinei. - a frase soou seca e rude, e Janaina acabou se calando por uns minutos, sem graça, voltando a lembrar do passado. - Desculpa Jana, não quis parecer tão fria.

- Tudo bem. - E abraçou Maria como se a dor pudesse se dissipar na troca de energias.

- É, tudo bem. - abaixou os olhos.

- Se amanhã você acordasse e fosse hoje de novo, e tudo que você fizer hoje se repetisse independente do quanto tentasse não repetir, e isso acontecesse para sempre. O que você faria, Maria?

- Não sei, o que você faria? - Maria olhou para o céu, e as estrelas estavam tão nítidas, e a lua refletia um claro tão intenso, que sentiu que aquele dia não era como nenhum outro, e não poderia nunca ser.

- Eu faria o que tenho feito nesses últimos dias, deixaria tudo fluir, como deve ser.

- Eu não poderia deixar de fazer uma última coisa antes que o dia acabe.

- O que? - Janaína por um momento deixou de olhar para o céu, e se virou para Maria buscando uma resposta.

Maria passou os dedos pelo rosto de Janaína, que não conseguiu esboçar nenhuma reação. Passou os dedos pelos olhos, envolta dos lábios, perto da orelha. Beijou-lhe a testa, o queixo, o nariz e por último, os lábios. - Isso - Suspirou.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Jan 28, 2018 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

Instantâneo ⚢Where stories live. Discover now