24 - mudanças

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Bernardo

Estou voltando do trabalho na terça e prestes a abrir o portão de casa, quando Priscila surge na minha linha de visão com uma roupa curtíssima e um sorriso no rosto maquiado.

Só me faltava essa!

— O que você está fazendo aqui? — questiono impaciente, correndo a mão sobre o cabelo.

— Eu só passei pra dizer um oi, meu amor. — Ela se aproxima, ficando de frente para mim.

— Oi... agora vaza!

— Não precisa me tratar assim. — Faz uma careta de decepção.

— Trato você do jeito que eu quiser. Pensa que eu não sei que você quis me ferrar com a Cecília?

— E consegui? — Ela nem tenta esconder o sorriso satisfeito.

— Claro que não! Você só nos aproximou mais — murmuro. — Cecília está esperando um filho meu. — Abro um sorriso para a sua expressão raivosa.

— Isso é mentira!

— Verdade. Eu serei pai daqui a alguns meses e estarei morando com a minha namorada em breve, então é melhor ficar bem longe de nós.

Priscila está com os olhos arregalados de surpresa e ódio.

— Não acredito nisso, seu cretino! — Grita, avançando em mim com a intenção de me arranhar, mas seguro seus braços finos sem dificuldade, afastando-a de mim.

— Pois é melhor se tocar e cair fora da minha vida — murmuro entre dentes. — E se eu souber que você machucou a Cecília e o meu filho, eu acabo com você, garota.

Meu temperamento ferve só em imaginar o que essa maluca pode fazer e eu poderia facilmente me tornar um cara irracional.

— Você e essa cega maldita vão me pagar! — Ela se afasta, pisando duro, e eu respiro fundo antes de destrancar o portão de ferro e virar a maçaneta da porta.

Entro em casa finalmente, levando um baita susto.

— O que é isso?

— Como foi no trabalho, filho? — inquere Bruno, sorridente.

Acho que enlouqueci, só pode ser isso!

Nunca pensei que fosse viver pra ver meu pai de paletó e gravata e com uma bíblia na mão. E o cara que eu acho que é meu pai está com os cabelos penteados e a barba tirada.

Ele está meio envelhecido pela bebida, mas completamente diferente do cara que eu via, constantemente jogado sobre o sofá. Até parece o Bruno de antes: o cara que nunca pensei que cairia no poder traiçoeiro do álcool.

— Festa à fantasia, é isso? — murmuro, cético.

— Estou indo à igreja, filho — diz, observando algum ponto aos seus pés antes de voltar os olhos para o meu rosto.

Ele não parece estar brincando.

— Ah... — É a única coisa que consigo dizer.

— Eu fiz muita coisa errada, filho, principalmente com você. — Ele se aproxima e eu me contenho para não me afastar. Sua mão esquerda pousa sobre meu ombro de forma branda.

— Você está sóbrio?

— Sim, não toquei em bebida. Estou parando — murmura decidido e eu disfarço a surpresa.

Não consigo sentir o cheiro de bebida alcoólica, geralmente, impregnado nele e acho que Bruno está dizendo a verdade. Provavelmente estou em uma dimensão paralela; essa é a explicação mais aceitável para esse momento.

— A nossa vizinha, Joana, me convidou para ir à igreja que ela frequenta. Eu fui todos os dias nas últimas três semanas. O pastor da igreja me deu esse paletó. — Sorri. — Também estou frequentando uma associação de alcoólatras anônimos que oferece apoio psicológico para lutar contra o alcoolismo. Acho que você não percebeu porque não conversamos muito e você sempre está no trabalho ou na escola à noite — diz ele, calmo.

— Hm. Isso é bom pra você — murmuro, boquiaberto.

Esse é mesmo o meu pai?!

— Não posso ir sem antes fazer algo que devia ter feito há muito tempo.

— O quê?

— Pedir perdão. — Eu o encaro; o semblante sério. Juro que consigo ver uma emoção, há muitos anos, adormecida em seus olhos escuros. — Você me perdoa, filho?

— Eu... — As lembranças passam pela minha mente e eu poderia dizer "não", mas finalmente penso em Cecília e no nosso filho, e as coisas se ajeitam na minha cabeça. Não preciso mais guardar mágoa, ela não é necessária na vida que estarei construindo. Não quero que ela estrague as coisas boas que eu consegui e por esse motivo eu balanço a cabeça lentamente.

— Muito obrigado — diz ele e passa o dorso da mão nos olhos, enxugando as lágrimas que escaparam. — Eu te fiz muito mal, filho. Sua mãe morreu e descontei as frustrações em você. Eu deveria ter cuidado de você.

— Deveria. — Engulo em seco, ignorando a ardência incômoda nos olhos. — Mas já passou. Eu cresci e não tenho raiva de você como antes, apesar de ter grandes motivos. Mas não vale a pena guardar rancor. O passado deve ser deixado no lugar dele.

— Tenho orgulho de você. Muito orgulho. Obrigado por não ter me abandonado como eu merecia. Você sempre trabalhou e nunca me deixou passar necessidades ou morrer em alguma esquina suja por aí — diz ele; a voz embargada dificultando um pouco as palavras. — Por ironia do destino, os papéis de pai e filho se inverteram e eu sinto muito por isso. Eu te amo, filho e vou passar o resto dos meus dias me redimindo por ter machucado você. — Esboça um sorriso triste antes de ouvirmos uma voz na entrada da casa.

— Já está na minha hora. Boa noite. — Ele limpa a garganta e sorri antes de dar uma batidinha no meu ombro, afastando-se em direção à saída. — Um dia você pode passar lá na igreja. As portas estarão sempre abertas.

Anuo meio aéreo com a situação atual.

— Vamos, querido. Acho que o culto já começou. — Nossa vizinha chama e eu noto que o céu está suficientemente escuro com a chegada da noite.

— Estou indo, Joana. — Ele segue até a mulher que sorri e acena para mim.

— Tchau, filho — diz Bruno, lançando um olhar significativo na minha direção antes de se afastar.

— Tchau — murmuro simplesmente.

Balanço a cabeça, incrédulo, conforme tranco a porta e sigo até o quarto.

O mundo é mesmo uma caixinha de surpresas.


Uma Luz Na EscuridãoWo Geschichten leben. Entdecke jetzt