Parte um

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"Você se lembra de alguma coisa do exato momento do sequestro, querida?"

Fiz que não, meio trêmula, e realmente não o fazia. Não conseguia lembrar-me do ato do sequestro ou de qualquer coisa que havia vivido antes – era nova demais, e devo confessar que sofri uma bela lavagem cerebral para que isto acontecesse.

"Lembra-se de algo acerca dos primeiros anos?" ela perguntou, e eu fiz que sim, deixando meus olhos marejarem rapidamente ao recordar-me do começo daquela história.

"Pode me dizer o que se lembra, Kristen?"

Mesmo sem perceber, eu arfava, e meu pai, que estava do meu lado, apoiou a mão no meu ombro, me tranquilizando. Seu toque parecia emanar acolhimento e segurança.

Eu assenti, e respirei fundo.

"E-Eu me lembro do quarto... Era escuro lá, e sempre fazia frio" expliquei, com calma, tentando diminuir o ritmo das batidas aceleradas do meu coração ao me recordar do lugar onde eu ficara confinada.

"Havia somente um basculante como entrada de ar, que ficava bem no alto da parede, sempre aberto, e o quarto tinha apenas uma cama e uma estante de madeira."

A psicóloga, acompanhando o ritmo de minhas palavras, tinha toda a sua atenção voltada para mim.

"Você recebia visitas?" perguntou, calmamente.

Um frio inexplicável percorreu todo o meu corpo. As lágrimas que eu tentava conter enfim rolaram pela minha face e eu passei a chorar descontroladamente ao recordar-me de minha situação com ele.

"Não tem problema se não quiser falar sobre isso agora, Kristen... Nossa sessão funciona a seu tempo."

Eu mordia o lábio, por força do hábito, para me fazer parar de chorar, tão forte que meu lábio inferior sangrou, um hábito que ele me ensinara a praticar porque dizia que eu não deveria chorar e isto me ajudaria a segurar o choro.

"Filha, você não precisa mais disso" meu pai me lembrou, calmamente. "Pode chorar livremente, minha Kristen."

Aos poucos, meus dentes foram afrouxando a mordida e eu fechei a boca, sentindo o gosto de sangue, o que me fazia ter uma vontade intensa de chorar. Ele gostava de ver aquele sangue, eu me recordava bem, gostava de suga-lo de meus lábios em durante seu beijo asqueroso.

"Tem algo que queira comentar comigo a respeito de uma visita que recebeu, Kristen?" ela perguntou, tentando não se espantar com minha boca que certamente estava machucada. Eu nem precisava de um espelho para saber o estado em que me encontrava, pois perdi a conta de quantas vezes ele me deixara daquela forma para me ensinar a parar de chorar.

Concordei, fracamente, ao sentir força advinda da presença de meu pai, que permanecia com a mão em meu ombro, em sinal de apoio.

"Ele não costumava me visitar todos os dias, no começo" contei, cabisbaixa, enrolando um fio solto da manga de meu suéter. "Ás vezes, uma mulher, que nunca me mostrava seu rosto, vinha me visitar, limpar o quarto, trocar os lençóis, e eu, sempre desesperada por não entender o que se passava, a questionava o que fazia ali, a perguntava o que estava acontecendo... Nunca tive uma resposta, pois ela parecia não me ouvir."

Uma lágrima rolou pela minha face ao lembrar-me da sensação horrível que era questiona-la e nunca ouvir nada em resposta. Memórias de uma Kristen aos sete anos de idade, gritando, chorando, implorando por respostas, me atingiam como um soco no estômago.

"As visitas dele passaram a ser frequentes com um tempo, pois ele analisava seu território, sendo agradável comigo, com exceção de quando eu o perguntava seu nome (sempre mudava de assunto rapidamente, pois deixara claro que não responderia aquele questionamento)" expliquei, mesmo que cada palavra me doesse como uma queimadura de segundo grau. "Ele me contava histórias falsas sobre um homem muito mau de quem dizia ter me salvado, quando eu perguntava quem era o homem que aparecia nos meus sonhos como um resquício de memória (o meu pai), e me dava livros, livros maus que me faziam acreditar que ele... que ele... havia me resgatado do meu pai... que ele era... bom."

Senti o ímpeto de morder o lábio de novo, mas me contive ao sentir meu pai segurar meu ombro com firmeza, me passando segurança.

"Ele costumava usar palavras agradáveis comigo, no começo, costumava tentar me convencer a fazer o que queria com o argumento de que aquilo era o correto a se fazer, mas tudo isso apenas foi se desfazendo, aos poucos, e ele foi perdendo o 'filtro'... Passou, então, a ser cada vez mais raivoso, mais desesperado, violento, mais bruto..." relembrei, deixando cair pesadas lágrimas ao me recordar do que eu sofrera, recordar-me de seus golpes violentos, das suas mãos fortes contra meu indefeso corpo.

"Com ajuda dos livros, ele me manipulara a pensar que certas coisas, coisas horríveis, eram comuns, e... e ele... e-ele me tocou de forma tão imunda... e-eu nunca mais vou me sentir do mesmo jeito... e eu... e-eu cheguei a aceitar."

Era tão pesado, tão sôfrego, para mim, ter que admitir tudo aquilo que eu pensara nunca querer colocar para fora. Sem pensar duas vezes eu confiara a ela meu maior e mais sujo segredo: eu aceitei suas atitudes, e até mesmo gostava. Eu gostava dele, eu costumava gostar de nossos momentos sujos, porque, ao menos, eu não me sentia sozinha, pois estávamos juntos. E, por mais que me machuque dizer, eu sei perfeitamente que não poderia ser de outra forma.

Eu fui usada como um maldito objeto – ele conseguira facilmente me manipular a gostar dele a ponto de aguentar as atrocidades que fazia comigo.

"Deixe-me ver se entendi isso, Kristen... Você se apegou a ele, certo?" a doutora frisou, pacientemente. Fiz que sim, cabisbaixa, me sentindo derrotada. "Isso é mais comum do que imagina, não se preocupe."

"Mas eu... eu o deixava..." não consegui não chorar ao levantar um pouco da manga do meu suéter e encarar uma das muitas cicatrizes que ele me deixou.

Uma para cada dia que você foi minha, ele dizia, com seu sorriso encantadoramente perturbador.

Levantei um pouco mais a manga, o suficiente para que a doutora visse algumas delas.

"Foi ele que fez isso com você, Kristen?" perguntou, suavemente.

Mesmo com a minha visão embaçada de lágrimas, fiz que sim, levantando-me e, sem floreios, tirando meu suéter.

Estive tão acostumada com aquela exposição que não conseguia ficar tão surpresa quanto ela ficou ao ver tantas cicatrizes envolvendo todo o meu tronco, os meus braços, meu busto, minhas costas... Afinal, tudo em meu corpo me mostrava o tempo em que fui confinada por ele.

Enxuguei meu rosto molhado com o dorso da mão direita e sentei-me outra vez na cadeira, de frente para a psicóloga.

Tentou disfarçar o quanto estava abismada, e logo me perguntou, mesmo sem jeito:

"Sabe dizer o que a fez se apegar tanto assim, Kristen, a ponto de permitir algo assim?"

Fiz que sim, encarando meus pés enquanto recordava-me da forma como ele me tratava no começo de tudo.

"E-Ele dizia que me amava..." murmurei, meio sem jeito, mesmo sabendo que aquela era uma justificativa estúpida. "Ele não costumava me dizer nada. E-eu não sabia meu nome e não sabia quem eu era, mas e-ele dizia que me amava, e que fazia o que fazia porque aquilo era o amor... Então eu acreditei nele. Que outra escolha eu tinha?"

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Deixem mais estrelinhas para mais capítulos! ⭐

E... é isto. Vamos fazer o reino de Deus conhecido!

Muito além de cicatrizesOnde histórias criam vida. Descubra agora