2- No qual um humano de sete anos me causa uma crise

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- Você não pode desperdiçar comida assim! Tem gente passando fome, sabia?


- Eu não vou estar desperdiçando se eu der pra essas pessoas comerem, então.


- Sim, mas... Você deveria comer o que te dão. Isso não é muito educado.


- Mas eu odeio alho.


- Cate o alho!


- Mas a comida toda está com cheiro de alho!


- Eu não sabia que eu vivia com uma vampira!


Oh, sim. Quem estava rejeitando comida nessa situação era eu.


Pelo menos eu nunca disse que iria cuidar de Peter, ou feriria meu orgulho voltar com minha palavra. Fazia agora uma semana e dois dias que estávamos viajando juntos pra escapar dos caçadores, e por mais irônico que eu diga isso, a mágica acabou rápido. Não que eu sentisse vontade de abandoná-lo na estrada, embora ameaçasse ele disso às vezes. Ou que ele quisesse me matar enquanto eu dormia, ainda que eu sempre levasse um susto quando ele se enfiava na minha cama no meio da noite. Eu usava a noite para ler meus livros e treinar feitiços mentais, então não era perigoso, mas ainda acabava dando um pulo onde estava quando sua pequena mão agarrava o tecido cobrindo minhas costas.


- Eu vejo fogo quando eu fecho os olhos. - Com essas poucas palavras sussurradas por ele, eu baixava a guarda.


- E o que você quer que eu faça? - Perguntei na primeira noite. Eu poderia simplesmente enfeitiçá-lo, mas me pareceu mais interessante perguntar.


- Pode me contar uma história?


Eu já não tinha os livros de contos que eu conseguira três anos atrás, e ele deve ter notado, já que me pediu pra contar uma história, e não ler uma. Ainda assim, que história uma bruxa velha como eu poderia contar? Ainda que meu exterior fosse de uma bela mulher em seus vinte e tantos anos, minha memória era horrível por causa de uma idade já avançada. Claro que algo assim não era impossível de ser resolvido com magia, mas fora minhas pesquisas e conhecimentos básicos, até então havia pouca coisa que valesse o esforço de manter uma mente jovem. Eu já me esforçava demais tentando me manter viva.


Por isso eu fiz uma careta tentando pensar em alguma história. Decidi inventar uma.


- Era uma vez, huh, uma... Uma bruxa.


- Oooh.


- Ela estava... Estava, sabe, pesquisando coisas em seus livros, quando ela encontrou um livro de conto de fadas.


- E aí?


- Era um livro que tinha, tipo, todos os contos de fadas que existem. Mas ela nem sabia o que um conto de fadas era até então. Aquele livro havia aparecido lá quando ela usou um feitiço pra conseguir todos os conhecimentos do mundo, o que fez sua casa encher de livros, cada um cabendo tudo sobre alguma coisa, e aquele era sobre contos de fadas.


Ele se sentou com postura na cama, ficando empolgado com a história. Eu poderia me acostumar com sua expressão interessada. Comecei a pensar que eu deveria virar escritora.


- Ela se indignou que nos livros, as bruxas sempre eram as vilãs. Ela se achava uma bruxa muito boa, já que ela... ela, huh, só bebia um pouco do sangue de criancinhas uma vez por ano. Mas ela usava magia pra curá-las depois e ainda deixava doces em seus travesseiros! Por isso ela ficou tão indignada, mas tão indignada, que decidiu matar todas as princesas do mundo.


- E aí...?


- Como assim e aí? A bruxa ficou feliz e fim, ué. Ah, mas acho que deve fazer falta uma continuação sobre o que aconteceu quando ela conseguiu todo o conhecimento do mundo, não é?


Peter hesitou, e instantes depois caiu deitado na cama ao meu lado, dizendo que estava com sono. Eu cobri seus olhos com minha mão e logo sua respiração se acalmou. Só foi difícil manusear meus livros com uma mão só pelo resto da noite.


Nas noites seguintes, eu continuei com a saga da bruxa, e na quinta noite ele me traumatizou dizendo que eu não sabia contar histórias. Qual era a dessa geração e sua noção de finais felizes? As bruxinhas no meu tempo...


Não, a frase não tem continuação. Como disse, minha memória é horrível, não tem como eu saber das bruxas de quando eu era jovem. Eu nem sei se havia contado histórias assim antes disso.


Mas enfim, isso foi só o começo. Percebi que implicávamos sobre muitas coisas, mesmo que fossem besteira. Ele não tinha medo de mim, e eu não queria me livrar da peste que tirava o tédio dos meus dias, então não havia nenhum perigo de verdade. Era pura implicância infantil, e nós dois tínhamos uma boa noção de onde parar e fazer as pazes, então a única coisa que me incomodava, era...


Por que eu fazia o papel da criança?


Não, sério, por quê?


Eu estava pensando em dias confortáveis e fofinhos com uma criança me seguindo como se fosse um filhotinho de cachorro, sendo sempre carinhoso pra conseguir uns afagos. Enquanto isso eu iria discipliná-lo com um sorriso no rosto e meu queixo levantado com orgulho, mas...


Mas isso parecia mais com dois cachorros que ficam latindo um pro outro e que dormem juntinhos de noite pra evitar o frio.


E a minha doce ilusão durou tão pouco. Intimidade é algo assustador.


Peter me cobrava de me alimentar direito, coisa que eu não fazia por ter meus poderes de regeneração, e se recusava que eu usasse eles nele pra que não precisasse comer frequentemente também. Lá se foi meu plano de não aparecer muito. Éramos dois esquisitos saindo no sol com capuz pra fazer feira. Ele era albino, e eu podia ser reconhecida, mesmo que nunca tivesse deixado algum de meus ofensores vivo, então... Nunca se sabe, não é?


- Olha! Eu sou chapeuzinho vermelho! - Ele disse, testando um tecido vermelho de uma loja pela qual passamos. A cor ficava bem nele, mas eu tive que costurar uma capa marrom pelo mesmo motivo que ele tinha que usar uma capa pra começar: não chamar atenção.


- Cai fora pirralho! - O dono da barraca lhe deu uma vassourada, e Peter correu pra trás da minha saia.


Olhei no fundo dos olhos do velho rabugento. Eu podia ver que ele tinha suas dificuldades e sofria como qualquer ser humano nesse mundo em que os próprios seres humanos eram o problema. Eu podia ver que ele se preocupava se teria pão na mesa no dia seguinte, e que se apoiava nos pequenos momentos felizes e na bebida. A bebida o fazia mudar de temperamento e bater em todos da casa. Ainda assim ele...


- Bell?


Eu suspirei. Nada disso era problema meu. Eu não existia pra mudar este mundo.


- É muito feio bater no filho de alguém. Eu exijo uma compensação.


O velho estava completamente hipnotizado pelo longo contato visual, mas para evitar pelo menos um pouco de desconfiança, o fiz falar:


- Há! E com que direito a senhora diz isso?


Mostrei um anel no meu dedo que provava que eu tinha alto poder econômico e político. Na verdade eu não tinha, só roubei de um corpo, mas se estressar demais com detalhes causa rugas.


E assim fiz o velho rabugento nos dar um saco de dinheiro e o tecido vermelho. Pra quem passasse na rua, seria um conflito qualquer com alguém rico, ou isso eu esperava.


- Você sempre faz isso? - Peter perguntou, admirando o tecido enquanto eu o arrastava com a mão pra longe.


Não respondi a pergunta, mas disse: - Vamos ter que ir embora daqui o mais rápido possível.


Por dentro, eu estava me perguntando por que comecei a me deixar afetar tanto por algumas coisas que só iriam causar problemas.


Eu avisei que não sabia cuidar de criançaWhere stories live. Discover now