Sinopse

48 6 2
                                    

Minhas memórias estão embaçadas, como um espelho de um banheiro de quando tomamos banho quente, aqueles que desenhamos um sorriso na superfície e as partículas escorrem formando gotas pesadas. Mas minha memória é somente uma fumaça que não se dissipa, que está ficando cada vez mais densa e difícil de respirar, eu não consigo me lembrar de como fui parar no hospital, entubada, com uma equipe de médicos cuidando de mim a cada segundo, não entendia o que eles estavam falando.

Eu escutei vozes aceleradas mas distorcidas e distantes, era incapaz de compreender qualquer palavra mesmo que dirigidas a mim. Eu olhei para um médico que estava tentando se comunicar comigo, ele sorriu gentilmente após notar que eu estava acordada. Apenas acenei com a cabeça dizendo que não. Eu não sentia nada, meu corpo parecia anestesiado. Estava incapacitada de falar ou mover meus braços. Estava com medo, era inevitável, eu nem sabia o que estava fazendo ali e nem sequer conseguia formular uma frase para perguntar, minha voz saia em grunhidos mesmo que eu me esforçasse em dizer alguma coisa. Comecei a chorar, foi a única coisa que meu corpo obedeceu na cadeia de comandos que eu enviava, mas logo apaguei de novo.

Desde aquele dia eu não tive um segundo de paz, fizeram tantos exames em mim que eu tinha constelações em meus braços, marcas roxas e vermelhões de onde agulhas espetaram nas dezenas de testes.
Tinha apenas 14 anos quando descobriram que eu tinha LMA, leucemia mielogênica aguda, um tipo raro.

Fui submetida a fazer terapia de indução para destruir células doentes do sangue e da medula óssea, tentando de alguma forma me livrar dos sintomas do LMA. Fizeram testes para garantir a eficácia, porém após um bom tempo sem ter uma vida adolescente comum, não houve nenhum tipo de mudança ou melhora, logo assim, comecei uma radioterapia, querendo minimizar a zona de impacto na minha vida.

Lembro-me de ver meu pai, ele tentava fingir que estava tudo bem, sorria o tempo todo para mim, aquele sorriso coringa com os olhos tristes, e por mais que eu notasse em seu rosto a tristeza e o medo, ele nunca chorou na minha frente.

Larguei a escola e comecei a estudar em casa. Me escondi do mundo, doente, sozinha e entediada. Nos primeiros 7 meses de radio eu perdi 18kg, não tinha apetite, vivia com algum sintoma doente, pálida e fraca, o tratamento não estava surtindo efeito, o que temiam aconteceu, precisei correr a quimioterapia. E foi aí que minha vida acabou.

O tratamento foi um golpe assertivo que me provocou inseguranças diversas, por outro lado, eu estava estabilizada.
Meu cabelo começou a cair, falhas apareciam em todo couro cabeludo, eu tive que raspar mesmo que contra meu desejo. Eu odiava minha aparência, estava com 12kg abaixo do meu peso ideal, eu tinha aparência de doente, tudo em mim exalava que era doente, não tinha força para me erguer da cama, até mesmo tarefas simples eram difíceis para mim. Eu não via sentido em viver dessa forma, mas achava força para fazer isso por meu pai, lutar por ele, mas um dia eu me cansei de ficar escondida, cansei de fugir do meu reflexo e de tomar aquelas bombas radioativas. Eu não tinha previsão de viver muito, então decidi que o pouco que eu viveria eu faria valer a pena.

Comecei fazendo uma lista 12 coisas que eu precisava fazer para viver, e para começar, conquistei uma bolsa no melhor colégio da minha cidade, onde a elite fica.
Meu pai, obviamente, era contra minha ideia suicida de parar o tratamento de quimioterapia, foi difícil explicar para ele que eu estava me mantendo viva sem viver, que aquilo me machucava. Buscamos por formas alternativas de tratamentos, por remédios que não me adoecessem enquanto me curavam, e assim, eu recuperei a minha cor, meu cabelo e meu peso, voltei a parecer viva novamente. Obtive meu brilho e minha esperança de ser feliz, mesmo que estivesse com um relógio em contagem regressiva dentro de mim.

Campo De BorboletasOnde histórias criam vida. Descubra agora