Capítulo 1 - Gael Soares

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Todos os dias são carregados da mesma sensação de infelicidade, para Gael, os momentos são sempre os mesmos, os sentimentos encurralados num estado de inercia, que funcionam como barreira para os impropérios dissonantes da existência.

O restaurante lotado lhe enche os olhos, mas não tanto como um dia pensou que faria, sua dor é latente em seu peito, ignorada enquanto ele apenas trabalha o máximo que seu corpo pode aguentar, as noites carregadas de lembranças oriundas do passado são facilmente resolvidas com o frasco de remédios que sempre o acalentam, tornando seu sono um simples borrão de inconsciencia, sem pesadelos, mas também sem sonhos.

- Mas que merda é esta que você está fazendo? - Exclama irritado com o funcionário recém contratado, talvez ele não tenha aprendido realmente o prato que estava a preparar, mas isso era insignificante para Gael. Motivos para gritar lhe agradavam, desprezar a improficiencia alheia sempre fora uma valvula de escape, para evitar pensar em seus próprios erros. Na noite mal iluminada repleta de pesadelos que lhe pertubavam sempre que tinham chance.

- Me desculpe chefe, estou tentando seguir as instruções mas nunca havia feito algo assim - diz o cozinheiro com a voz trêmula, ele sabia que não seria fácil lidar com o chefe Gael Soares, sua fama de ser rígido e provocar lágrimas em seus funcionários é tão sólida quanto sua reputação no mundo gastronômico.

- Se for trabalhar para mim saiba que não tolero erros, meus clientes merecem sempre o melhor e nada abaixo disso, entendeu? - sibilou Gael pegando a colher da mão do homem que engoliu em seco se afastando um pouco para observar.

- Tudo precisa ser muito delicado, a comida precisa ser saborosa e ao mesmo tempo agradável aos olhos - diz Gael, passando o molho ao redor do pequeno amontoado de queijo em quatro texturas diferentes, com maestria pintou o prato semelhante a um pintor pincelando um quadro, tudo milimetricamente calculado, Patrick, o funcionário, observava com atenção cada movimento das mãos calejadas do chefe, o que não passou despercebido pelo mesmo.

- No próximo pedido você fará exatamente desta maneira, procure não errar, pois há muitos que matariam para entrar nessa cozinha - Gael diz de forma ameaçadora enquanto coloca o prato sobre a bancada tocando o sino para o garçom levar até a mesa - Está avisado!

Ele sai de perto do recém contratado e suspira frustrado. Sente uma pontada em sua perna e grunhe irritado, sai andando pela cozinha examinando superficialmente o trabalho de seus funcionários, tudo parece fluir, então disfarçadamente Gael sai pelos fundos até o beco que fica atrás do restaurante, procura o banquinho que fica por ali e senta-se com esforço.

- Já não basta o estresse que eu já possuo... - resmunga enquanto massageia a coxa direita, a dor aguda se manifesta mais abaixo, mas nenhuma massagem é capaz de extingui-la, já que não há musculo sequer, não há tecido nem nervos, somente uma prótese cara e feita sob medida. A dor do membro fantasma lhe acompanha por vezes, nunca foi de fato um grande problema, mas quando aparece se torna um belo estorvo.

A noite mal iluminada pelos postes traz consigo um clima gélido, as ruas estão movimentadas, Gael pode observar as pessoas caminhando despreocupadas pela rua Augusta, onde seu restaurante, Obeliscus, toma uma pequena parcela da calçada. Sua primeira opção era a grande Avenida Paulista, mas a Rua Augusta lhe caiu melhor do que esperava.

A porta pela qual saiu se agita quando Marie sai apressada pela mesma, encara Gael que retorna o olhar com cara de poucos amigos.

- Tem uma mulher que se denomina crítica gastronômica da revista Caras, deseja falar com o senhor, mesa 8 - ela solta com rapidez e do mesmo modo brusco que chegou, volta ao trabalho.

Gael bufa frustrado, olha em seu relógio e vê que já passam das 22h, não havia nenhum crítico para hoje, mas estes seres são tão imprevisíveis que não é surpresa alguma, isto faz com que eles consigam realmente analisar a essência dos estabelecimentos, não há tempo para preparo mas isto não preocupa Gael.

Correntes de VidroWhere stories live. Discover now