queime o demônio

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DOIS MESES DEPOIS DE ELIZE PRESCOTT NÃO MORRER

Elize Prescott comia o sanduíche de geleia de morango com tanta vontade que Scott J. Adams começou a cogitar a real possibilidade de ela não ter se alimentado de verdade desde que havia voltado do inferno. Mesmo assim, não disse nada. Havia aprendido por experiência própria que comentar qualquer coisa a respeito dos hábitos alimentares de Elize poderia resultar em algum ataque violento da parte da garota. Ele nunca se esqueceria do dia em que ela jogou um prato de macarrão na cabeça dele só porque Scott disse que ela havia colocado molho demais.

— Eu te faria mais um se meus dedos ainda estivessem nas minhas mãos —comentou ele, encostado no balcão da cozinha.

A faixa branca ao redor do machucado já estava quase completamente vermelha. O sangue pingava no chão de madeira polida da mansão Prescott e se infiltrava nos vácuos entre as tábuas como se a casa estivesse se alimentando dele.

Elize, sentada no balcão em frente a ele, levantou os olhos e disse:

— Você é muito dramático, Scott. Foi só um cortezinho. Comparado ao que você fez comigo isso não é nada.

Ela tinha razão: o corte, apesar de fundo, não havia arrancado o seu dedo do mesmo jeito que o triturador da Frigorífica Prescott havia arrancado todos os dedos dela. Apesar disso, Elize parecia inteira e Scott sabia que precisaria de pontos, então não estava tão otimista assim.

— Se meus dedos voltarem ao normal do mesmo jeito que você voltou, então fico feliz.

Elize riu, se divertindo com a conversa. Era estranho vê-la tão feliz, imersa em um clima aparentemente tão relaxado, enquanto tudo o que Scott sentia era pânico. Suas respostas sarcásticas e aleatórias eram como uma espécie de sistema de defesa que estava ali para impedi-lo de se aprofundar em assuntos perigosos — se não falassem a respeito do que ele tinha feito, então estaria tudo bem. O lado esperançoso de Scott torcia até mesmo para que ela esquecesse de tudo.

Elize terminou a sua esmera refeição ainda alegre, parecendo satisfeita. Pulou da bancada, se aproximou de Scott e pegou a sua mão para desenrolar o pano de prato que serviria de curativo até que o dedo rasgado dele parasse de sangrar.

Quando a ferida ficou exposta, Prescott fez uma careta e disse:

— Vai precisar de pontos. Venha, vou cuidar de você.

Ela o puxou pela mão não machucada até a grande escadaria da mansão, e os dois seguiram pelo corredor norte até que estivessem no quarto de Elize, onde pouquíssimas boas lembranças se escondiam.

Assim que Scott pisou no carpete avermelhado algo dentro dele segurou o seu coração com as duas mãos e o apertou. Foi pura agonia. Ele olhou para a cama e se lembrou da primeira vez que viu Elize chorar, sentada ali, uns dois dias antes de seu aniversário; então olhou para a sacada do quarto e a imagem vívida de quando Prescott morreu veio à tona também. Um completo horror psicológico que atrapalhou até mesmo o andar de Scott, fazendo-o parar inconscientemente como se entrar naquele quarto fosse ser a mesma coisa que entrar nos confins do inferno.

— Vamos, sente-se ali.

Ele piscou e seguiu para o Puff em forma de coração que Elize indicou. Ele ficava perto da sacada, o que permitiu que Scott tivesse uma visão privilegiada das luzes de Westwood quando se sentou nele. Olhando para a paisagem, Adams percebeu que sabia onde ficava cada poste, cada lâmpada queimada daquele lugar. Conhecia a cidade como ninguém.

Elize foi até o banheiro e voltou com um kit de primeiros socorros, ajoelhando-se à frente de Scott. Sentada sobre os pés, ela apoiou a caixinha branca nas coxas e buscou tufos de algodão e o vidro de álcool.

Queime Tudo (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora