19

94 20 1
                                    

Volto de sua casa.

Que noite, Paulo! Que noite de ira foi esta para mim!

Cheguei ao Rio Comprido quase ao escurecer. Estavam todos no jardim. Depois de alguns instantes, Emília ergueu-se e se afastou lentamente do grupo. A alguma distância, parou para colher uma flor, voltou-se, e olhou-me.

Aproximei-me; ela continuou seu passeio solitário pela chácara. Chegando à cerca onde as murtas formavam um bosque espesso em torno de assentos de pedra, voltou-se de novo para mim e sorriu. Como eu hesitasse se devia segui-la, fez-me um aceno gracioso.

Sentamo-nos: eram seis horas da tarde; uma sombra luminosa ainda e de uma doçura imensa derramava-se por aqueles lugares.

As vozes de Julinha e das outras moças que passeavam do lado oposto chegavam-nos através das folhas e da sombra com uma suavidade extrema.

Mas essa doçura da tarde, a beleza de Emília, os perfumes das flores, tudo que havia de suave ali, irritava-me; eu tinha a alma ulcerada, e não havia bálsamos, senão cautérios, para cicatrizá-la.

Falei-lhe com volubilidade, travada do fel que borbotava do coração.

— D. Emília, nós estamos representando o papel de duas crianças, atormentando-nos um ao outro, e talvez servindo de tema à malignidade alheia. Ontem, a senhora cuida que não ouviram suas palavras?

— Que as ouvissem!... Foi o senhor mesmo quem se denunciou!...

— Já lhe disse e repito, D. Emília, eu não amo a senhora... Nunca a amei!...

— Mentiu-me, então?...

— Menti, confesso!...

— Creio antes que mente agora. A mentira é irmã do insulto.

— Desculpemo-nos mutuamente, D. Emília; ambos erramos; e para que estas cenas não se repitam, eu quero ser franco. A senhora me fez uma vez, há tempo, sua confissão: quer ouvir a minha?

— Fale! replicou Emília com um tom de ameaça.

— Eu não sou inteiramente pobre, mas também não sou rico, e tenho acima de tudo a ambição do dinheiro.

— Ah! fez ela cerrando as pálpebras e encostando a cabeça no recosto do banco para ouvir-me impassível.

Seu olhar, coando entre os cílios e partindo-se em mil raios, cintilava sobre o meu rosto, como o trêmulo rutilo de uma estrela.

— O que lhe vou dizer é talvez humilhante para mim; mas eu me sacrifico!

— Muito agradecida! Isso me penhora. — respondeu-me, inclinando-se com um sério imperturbável.

— À exceção do comércio, a senhora sabe que não há no Brasil carreira alguma pela qual se possa chegar depressa... e honestamente, à riqueza. A minha mal dá para viver com decência. Portanto sendo eu honesto... porque tenho medo da polícia, e não gosto que me incomodem... sendo eu honesto, repito, só havia um recurso à minha ambição... Adivinha qual?

— Suspeito; mas diga sempre.

— O do casamento.

— É um recurso lícito e fácil.

— Não tanto como lhe parece.

— Ora! Para o senhor?...

— Para mim, sim senhora; porque embora ambicioso, eu não estou disposto a sacrificar à riqueza minha felicidade; seria um absurdo, pois se eu quero ser rico é para ser feliz.

— E como pretende conciliar isto? Deve ser curioso.

— É agora que eu preciso de toda a sua indulgência; vendo-a quando voltei da Europa, senti-me atraído para a senhora por uma inclinação que eu considerei amor; e essa inclinação... Não devo ocultar coisa alguma para minha maior vergonha... essa inclinação aumentou involuntariamente quando soube que os negócios do Sr. Duarte tinham prosperado por tal forma que ele era, se não o maior, um dos maiores e mais sólidos capitalistas da praça do Rio de Janeiro... Não sei se deva continuar!...

Diva (1864)Where stories live. Discover now