Submersa

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14 de abril de 2082 – quase 20h

Universidade de Southampton, Hampshire

A Universidade de Southampton não limitava seu arcaísmo apenas à mobília predominantemente de madeira, ou mesmo nas antigas luminárias pelos corredores, que até são charmosas. Ainda faziam questão de manter um vigia no estacionamento, o senhor barbudo de sobretudo marrom se apertava debaixo da marquise. Não entendi uma palavra do que ele disse quando atravessei ao seu lado, como um raio em direção aos carros. Um simples "boa noite"? Algum aviso de acidente na estrada? Temi nunca saber, afinal, minha cabeça fazia o favor de se ocupar com algo muito pior naquele momento.

O chuvisco abandonou a noite tão rápido quanto minhas certezas sobre Jack Dawson. Ele não podia ser uma vítima nisso, muito menos ter viajado no tempo. Não podia ser verdade, lógico que não. Ganse só me fez perder tempo. Isso não existe. Isso não existe.

Os sapatos afundam nas poças que não enxergo e nas que faço questão de pisar. Seu material escurece e minha calça segue pelo mesmo caminho. Cadê a droga do carro? A água ensopa meu cabelo em segundos, os pingos estalando com força nos braços pelo atrito do meu corpo em fuga. Até que eu paro.

Sou um ponto encharcado no concreto negro e molhado do estacionamento. O céu tempestuoso se debruça acima de mim, consigo delinear o riscar da chuva através dos altos postes ao redor. Um mar de veículos desconhecidos e estou perdida em todos os sentidos. Minha mente borbulha incessantemente, não mais com a dor-de-cabeça de antes, porém com perguntas estranhas e respostas tortas.

O que aconteceu com esse maldito cara no dia que ele ferrou a vida da minha mãe?

Abraço a bolsa junto ao peito. Olho para trás, a vista molhada e a distância transformam o vigia em borrão, mal dá para saber se ele continua lá. Interrogações se acumulam, tal qual a umidade em minhas roupas. O bloquinho e a caneta vão estragar no bolso de trás da calça? Foram presentes de Gillian – ela vai me matar se eu ficar doente. Se eu ficar doente e morrer, ela vai me ressucitar só para me matar com as próprias mãos. Não a culpo, até Ben me mataria se soubesse das condições. Ben. Ben!

Junto os dedos na boca e assovio o mais alto que consigo. Escuto um click atrás de mim e viro a tempo de ver o carro familiar saindo de uma das vagas e vindo em minha direção. Suspiro de alívio e os pingos atrapalham minha boca. A porta do motorista se abre e a fecho, destravando manualmente a porta de trás. Me jogo no banco largo e o automóvel se fecha.

– Aquecedor – imploro entre tossidos, um vapor morno se formando ao meu redor. Agradeço mentalmente a Benjamin por ter instalado o aplicativo "Transforme seu carro em um cachorro", por mais idiota que tenha achado na hora. Um assobio do dono e ele vem. Ben nunca se convenceu do fato de eu não querer um animal de estimação.

– Qual é o seu destino? – a voz irritantemente calma do sistema de comando de voz sempre me assusta. Minha pulseira começa a vibrar e vejo que é Gillian ligando. Tiro o objeto do pulso e o jogo sem muito cuidado dentro da bolsa.

"Museu SeaCity" sai da minha boca e eu nem sei o porquê.

O SeaCity surge em alguns minutos com um letreiro piscante e um portão fechado ao longe. Visto um enorme suéter cinza-chumbo de Gillian perdido pelo chão quando o carro para. Tantas vezes vim aqui, mas nunca nessas condições. Jack Dawson, o ladrão d'O Coração do Oceano, esteve naquele mesmo lugar há 30 anos e, depois, nunca mais foi visto. O homem que acabou com a vida de Lizzy. O pintor que a enganou para roubar um colar de pedras preciosas. O ladrão que a fez esquecer da própria filha. O estranho que abomino.

Taí uma série de bons desenhos para fazer na próxima terapia.

As safiras eram uma constante que eu não entendia, fato. A ajuda do dr. Ganse mais confundiu do que elucidou nesse ponto. Pedra alguma, muito menos do colar, poderia fazer alguém viajar no tempo – seja lá para qual época fosse. Era engraçado só pensar nessa "possibilidade". Começo a rir sozinha. Que absurdo. Rio mais.

...Where stories live. Discover now