Naufrágio

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12 de abril de 1912 – Noite

RMS Titanic / Em algum lugar no Oceano Atlânico

Esperei a dor. Esperei os braços formigando, a tontura giratória, os pensamentos embaralhados, mas, para minha surpresa, me sinto estranhamente aliviada. Lembro da sensação de experimentar lasanha pela primeira vez, da primeira briga da minha vida na quarta série, do primeiro beijo com Ben, até quando perdi a virgindade. É esse tipo de sentimento, de descoberta, ativando algo em meu corpo já preparado e desejoso de fazer.

Estou deitada sobre um colchão, o corpo virado para uma parede branca. Não enxergo nada além do tom leitoso, também presente no lençol da cama e nos ferros de sua estrutura. É, isso faz bem mais sentido: enlouqueci e fui internada. Bem-vinda à nossa clínica de repouso, Aretha. Vamos cuidar tão bem de você quanto nos empenhamos em esconder "manicômio" na placa de entrada.

Os suspiros e roncos entrecortados sussurram uma canção calma pelo ar, e percebo um padrão no que seriam as notas mais altas, zumbidos respirados. Há pessoas dormindo ao meu redor. Aproveito um crescendo entre as estrofes do sono, que pudesse abafar qualquer ranger, quando sento na cama. Por pouco não acerto a cabeça na cama de cima, minha beliche não é a única do cômodo. Alguém dorme sobre mim e duas mulheres dividem outra cama de dois andares ao meu lado. As beliches seguem até o fundo do lugar a perder de vista. É minha chance.

Levanto e vou em direção à porta, o olhar pipocando através de uma portinhola circular. Não há ninguém no corredor e arrisco que estou na ala hospitalar do Titanic.

Funcionou. Viajei no tempo.

Meu Deus. Viajei no tempo.

Inspiro, expiro. Calma, Aretha, pensa nisso depois. Agora é fazer o planejado.

Se estou no hospital do navio, isso me coloca no Convés D, lá pelo lado direito do navio e perto da quarta chaminé – as horas a fio estudando o acervo de Gillian vieram a calhar. Gillian. Southampton. Safira. A safira!

Confiro o anel e ele olha de volta para mim em meu dedo, a safira está lá. Na meia luz do local, ela parece um pouco menos azul, mas sua beleza permanece hipnotizante. Entretanto, lembro do colar de Rose, o real motivo de eu estar ali. É minha missão aqui. Respiro fundo e rumo à maçaneta, com destino à Primeira Classe.

O corredor serpenteia um cheiro misto de temperos, mas não esbarro com ninguém. As paredes simples reproduzem o tom apático da enfermaria. Sigo um farfalhar de vozes, tão misturado quanto o aroma de comida no ar, até me deparar com uma porta dupla e mais portinholas. Quando tomo coragem para olhar através delas e do vapor abafado ao seu redor, vejo que se trata de uma cozinha a pleno vapor.

O lugar parece enorme. Por alguns segundos, consigo avistar mesas cobertas por leguminosas, bancadas enfarinhadas, caldeiras fumegantes e fornos com a logo engordurada da Cooking Wilson. Entretanto, o ingrediente principal do funcionamento do ambiente é, sem sombra de dúvidas, os cozinheiros. Fardados de branco – Tudo combina com aquele hospital ou é o contrário? –, correm de uma praça à outra, anunciando pedidos que transportam em panelas flamejantes; uma dança de cortes, picotes, mexidos, viradas e muitas doses de experimentação na colher. É hipnotizante.

Abandono a visão e colo o corpo na parede ao lado da porta, meio ofegante. Fico tentada a tirar o suéter pelo calor que emana das chamas vizinhas, mas foco no problema que surge em meu caminho: a escadaria que dá acesso à parte superior do navio – e, consequentemente, ao quarto de Rose – fica do outro lado da cozinha. Para chegar lá, preciso nadar entre seus tubarões de avental, que alimentam homens e mulheres nos andares de cima. Impossível não ser notada, quanto mais com essas roupas.

...Where stories live. Discover now