A mulher- parte quatro

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Papai não mencionou mais a conversa que tivemos, e eu não consegui que ficássemos sozinhos, hoje, a mulher nos acompanhava até a escola, descemos do carro e Rosie acenou para ela, papai deitou sua cabeça sobre o volante, ficando ali por um tempo.

- Thiago! Thiago!- chamei ele, ele veio até mim.- Você vê uma mulher dentro do carro?- os olhos dele percorreram o carro de papai, depois o que estava logo atras, percorreu os olhos em toda a frente da escola.

- Não, Gus... quer dizer, além da Sra. Lima ali, eu não vejo nenhuma "mulher" dentro do carro, por quê?- balancei a cabeça.

- Nada, vamos!- os olhos da mulher focaram em mim, me fazendo puxar Thiago pelo braço.

- Cara, você tá me assustando...


Chegando em casa eu notei que mamãe não via a novela como de costume, preparei um lanche pra mim e Rosie, e logo depois fui até o quarto, mamãe estava deitada e reclamava de dor de cabeça, não questionei.

Algumas horas depois papai ligou.

- Augusto, onde está sua mãe?- ele pareceu irritado.

- Ela está no quarto, acho que está gripada...

- Passe para ela.

- Pode trazer uma pizza hoje? Eu acho que ela não vai fazer o jantar.

- Tá bom... passe para ela.- papai estava irritado e precisa falar com a mamãe, levei o telefone até ela, saindo logo em seguida.

Papai chegou mais cedo que o normal, apenas alguns minutos, mas mostrava que ele tinha vindo correndo, por algum motivo que eu não sabia, ou talvez mamãe estivesse mesmo doente. Ele trazia pizza de calabresa com cebolas, minha preferida, Rosie colocou a mesa, parecia normal agora, pulava e tagarelava sobre como amava pizza, não vi papai, ou mamãe. Coloquei Rosie na cama e fui dormir, mas tinha um pressentimento de que a noite seria longa.

Era uma da manhã, fui acordado com gritos histéricos de uma mulher, ela parecia estar sendo atacada, demorou alguns segundos para que eu percebesse que aqueles gritos vinham daqui de casa, e que a mulher que gritava incessavelmente era minha mãe. Corri até o quarto abrindo a porta com força, papai estava parado do lado da cama olhando mamãe se contorcer, ele parecia paralisado por medo, eu tentei entrar mas logo vi a mulher ali e recuei. Papai correu até mim e fechou a porta com seu corpo, enquanto eu tentava passar pelas suas pernas, pude ver pelo espelho, a mulher encarando mamãe sem piscar sequer uma vez.

Mamãe continuava a se contorcer, e olhava para a figura a sua frente.

- Nos deixe em paz! Nos deixe em paz! O que você quer? O que você quer?- papai se virou, me segurou para que eu não passasse, mas eu ainda podia vê-las pelo espelho.

- Ana, não! Não fale com ela!- papai gritou bem alto.

- Me diga o que você quer!- mamãe tinha parado de se contorcer e olhava diretamente para a mulher, que agora estava mais próxima dela.

- Eu... quero... seus filhos!- a voz grossa como um rasgo no ouvido ecoou pelo quarto, pude ver o rosto da mulher se desfazer e transformar-se em algo disforme e assustador, uma boca grande e sem dentes, apenas um vazio negro e grandes que lhe tomava todo o rosto menos os olhos, que eram apenas duas bolas brancas, com veia negras espalhadas pelo rosto. A porta se fechou e mamãe voltou a gritar.

- Saía de perto de mim! Saía de perto de mim! Carlos! Carlos!

Papai estava paralisado, me agarrava enquanto eu tentava me desfazer de seu abraço paralisante, seu rosto tinha perdido a cor, sua boca estava num tom arroxeado, seus olhos arregalados. Os gritos pararam, eu relaxei e lágrimas saltaram rapidamente de meus olhos.

- Papai! Papai! Faça alguma coisa!- ele me soltou, entrou no quarto fechando a porta atras dele, apenas me deu um olha desolador, como se fosse tarde demais.

Eu corri para o meu quarto, sem saber o que fazer, o que aconteceu com mamãe? A mulher a levou? A mulher a matou? Por que papai deixou que isso acontecesse? Por que tudo isso estava acontecendo com a gente? A porta de meu quarto se abriu, Rosie entrou correndo e se enfiou debaixo das cobertas.

- Rosie?- eu disse ainda chorando.

- Gus...- ela soluçou- A mamãe se foi?!- ela parecia já saber, mas durante todo o evento eu não pude ver Rosie ali, como ela saberia?

- Sim...

- Gus?

- Sim.

- Você sabe por quê?

- Porque ela falou com a mulher, Rosie.

- Mas por que ela levou a mamãe, Gus? Por que ela levou a mamãe e deixou nós dois aqui?

- O que...

- Ela prometeu me levar também, Gus. Eu não quero ficar sem a mamãe lá.

- Rosie, ela não levou a mamãe pra lugar nenhum, ela a matou, e é isso que ela vai fazer com a gente, comigo, com você e com o papai, ela está te enganando, Rosie, você precisa ignora-la.

- Eu não consigo, Gus... Ela... Ela está dentro da minha cabeça. Quando eu durmo, quando eu fecho os olhos, até na escola, ela sempre está comigo.

- Rosie...

- O que?

- Aquele dia, quando você falou que o homem mau matou o filho dela... O que você quis dizer com isso?

- Ela me contou uma história de ninar, Gus, mas eu não consegui dormir.

- Por que você não me conta a história, Rosie?

- Você quer ouvir?

- Sim.

- Tudo bem... Ela me contou que há muito tempo atrás, tinha uma menina, ela era muito bonita, tinha cabelos negros como o breu e a pele branca como a neve, sua mãe fazia bonecas de pano, as mais linda da cidade, tinha muitas cliente, que admiravam a beleza da menina. A menina cresceu, e logo se casou com o xerife da cidade, ele já tinha se casado outras tantas vezes, mas por infortúnio todas as suas ex-esposas  morreram durante o parto do primogênito. A menina, agora mulher, engravidou pouco depois, e ao dar a luz à seu filho foi atacada pelo marido, o xerife bateu a cabeça do bebê várias e várias vezes no chão e com uma arma atirou na mulher, logo depois, ele levou a mulher ainda viva e o bebê morto até o meio da floresta, ateou fogo nos corpos, mas ainda assim a mulher não morreu, assistiu o corpo do recém-nascido assassinado sendo queimado pelas chamas, não dado por satisfeito, o xerife jogou o corpo da mulher e o cadáver da criança num poço abandonado da cidade. A mulher definhou por dias, jurando, cada segundo que ainda respirava, voltar para matar aquele que matara seu único filho.

- É só isso, Rosie?

- Sim...

- Você tem... certeza?

- Ela me contou que conseguiu se vingar do homem mau... E encontrou outras crianças que ele tinha machucado... E levou elas para o lugar encantado, e tomou conta delas, porque os pais delas... Estavam mortos.- Rosie se colocou de pé.- Você vê, Gus?

- O que?

- Ela não é má... Ela só quer tomar conta de nós.

- Nossos pais ainda estão vivos, Rosie, ou, ao menos, um deles.

- Ela não matou mamãe, Gus, ela a levou para o lugar encantado.

- Não existe lugar encantado, Rosie! Mamãe está morta e ela vai matar o papai também! Depois vai nos pegar e nos acorrentar num porão sujo e frio!

- Não!- Rosie gritou, eu olhei para ela, ela estava imóvel ali, tentei alcançar meu abajur, acendi a luz e a figura da mulher cresceu sobre as cobertas.

- Não, não, não, não! Não!- não era Rosie, era a mulher, ela estava ali o tempo todo, não, eu não acredito.

Agora era a hora que ela abriria a boca enorme e desdentada dela e me engoliria vivo? Fechei os olhos gritando alto por papai. A luz se acendeu, abri os olhos e o quarto estava vazio, as aluzes acesas e ninguém ali, nem papai, nem Rosie, nem a mulher, apenas eu. Olhei para os lençóis, estavam mijados, troquei eles rapidamente, e me deitei de novo, faltava meia hora para tocar o alarme, e eu esperei aqueles trinta minutos mais do que tudo na minha vida.

Delírios de uma mente quase sãWhere stories live. Discover now