Helene

277 25 1
                                    

- Corram! Corram!

O ar entrava com dificuldade em meu peito.

- Mais rápido!

Temia que a qualquer momento eu pudesse sufocar.

- Não desistam!

Mas era a sensação da falta de ar que me recordava de que eu ainda estava viva. O medo era imenso, causando uma linha tênue entre a minha consciência e os meus movimentos, os quais pareciam ser involuntários. O que estaria provocando a minha corrida? Os meus guias? Não há dúvidas de que sim, pois eles nunca nos abandonam.

Gritos ecoavam por todos os lados, deixando-me ainda mais trêmula. Não eram somente eles, contudo, que provocavam essa reação em mim: os corpos inertes sobre a terra, os mesmos que tornaram-se obstáculos para a minha corrida, também surtiam esse efeito. Faces conhecidas mostravam o quão frágil é a vida, que a qualquer momento poderia terminar como um sopro ao dissipar-se em um piscar de olhos. E apesar do luto, do medo e da falta de ar, eu corria. Corria com toda a força que me restava e que eu não sabia possuir, porque se eu parasse, eles capturariam-me e eu também morreria.

- Deuses, protejam-nos! - um homem ao meu lado gritou. 

- Helene! - a voz de Paolo destacou-se dentre os sons assustadores.

Avistei o meu irmão a poucos metros de mim, caído ao chão e rodeado pelos corpos sem vida. Apressei-me em sua direção e segurei-o em meu braços; em seguida retornando à corrida incessante. Meu corpo pareceu congelar de dentro para fora quando a morte passou ao meu lado na forma de uma lança, a qual acertou o homem que pediu proteção aos céus instantes antes. Não tive tempo para gritar, para pedir ajuda ou para lamentar: apenas para correr. Os nossos pais e os nossos irmãos estavam um pouco mais a frente e eu precisava alcançá-los.

Para o desespero ainda maior de todos aqueles que fugiam, os relinches dos cavalos foram ouvidos novamente.

- Estão-se aproximando! - Paolo agarrou-se mais a mim.

O seu rostinho frio pelo medo e umedecido pelas lágrimas mornas encostou-se ao meu pescoço. Segurei-o forte. Não permitirei que o meu irmão morra. Escapamos outras vezes; poderemos fazê-lo de novo. Qual sentido teria se morrêssemos agora? Sobrevivemos a tantas perseguições somente para quando chegássemos à Ligúria, tudo acabar? Sacudi a cabeça, afugentando as lágrimas. Não há tempo para lamentações. A morte não tem explicação e todas as pessoas agora sem vida são a prova disso.

- Eles estão em todos os lugares! - um soluço escapou de Paolo. 

As cruzes vermelhas voltaram ao meu campo de visão. Avistei um cavaleiro no instante em que ele usou a sua espada para separar a cabeça de uma mulher do seu corpo. Era Margarida, a melhor amiga da minha mãe. Por um momento, eu não podia mais me mover. Tudo ao meu redor começou a ficar lento e um forte zunido envolveu os meus ouvidos.

- Helene. - a voz de Paolo parecia distante. - Helene! - onde estavam os guias da Margarida que não a salvaram? - Ele está olhando para nós! - senti Paolo movendo-se em meus braços. - Ele está vindo para cá!

Os meus olhos deixaram o corpo da Margarida e encontraram o cavaleiro galopando em nossa direção, tirando-me do meu estado de torpor. Procurei por meus pais, quem há poucos minutos estavam a minha frente; porém não mais os vi. Rapidamente, eu desviei o caminho em direção a um pequeno córrego e corri desesperadamente por entre as árvores, desviando-me das suas raízes e dos seus galhos. Os galopes ainda estavam próximos. Avistei uma trilha estreita e corri por ela. Após um tempo, somente os murmúrios distantes e abafados pelos sons da floresta podiam ser ouvidos. Encontrei uma rocha e coloquei Paolo sentado sobre ela. Consegui respirar profundamente depois de tanto tempo. O ar frio entrou em meu corpo, fazendo-me estremecer ainda mais. Olhei para as minhas mãos sujas e trêmulas, tentando afastar da minha mente os gritos e os olhares sem vida que ainda reverberavam pela minha memória.

- Minha perna está doendo. - Paolo murmurou entre lágrimas.

Forcei-me a fingir calmaria e toquei o local onde a mão do meu irmão caçula pressionava.

- Você torceu o tornozelo. - expliquei. - Mas vai ficar tudo bem.

- Vocês falaram a mesma coisa quando fugimos de Veneza.

Os meus olhos encontraram os dele. Senti o meu queixo e o meu lábio inferior tremerem diante da tentativa de segurar o choro. Abracei-o firme, tentando consolar a nós dois. Eu sabia que deveria ser forte, mesmo desconhecendo de onde tirar essa força. Paolo tinha somente oito anos e já presenciou muita dor para a sua pouca idade. Afastei-me o suficiente para segurar o seu rosto entre as minhas mãos.

- Dessa vez vai dar tudo certo. Deixaremos essas terras e ficaremos seguros novamente.

- Quero a mamãe. - ele choramingou. - Onde ela está?

- Esperando por nós em algum lugar seguro na companhia do nosso pai e dos nossos outros irmãos.

- Onde?

Prendi a respiração por alguns segundos.

- Nós encontraremo-nos. - forcei um sorriso e peguei em sua mão para ajudá-lo a descer da rocha. - Mas primeiro precisamos sair daqui.

Os galopes voltaram e o meu sorriso fingido dissipou-se. Olhei ao meu redor, tentando sem sucesso avistar o cavaleiro. Eu sabia que ele estava próximo, porque o som dos cascos do seu cavalo o denunciavam. Olhei para Paolo e forcei-me a esconder o medo.

- Esconda-se atrás da rocha e não saia de lá sob nenhuma hipótese. - mandei. Assim que ele fez como eu disse, sussurrei com os olhos marejados pelas lágrimas. - Os seus guias levarão você até a nossa família. - acariciei o seu rosto pelo o que eu sabia ser a última vez e acompanhei com o olhar a lágrima que escorreu por sua pele. - Que Zeus o proteja!

Endireitei-me em frente à rocha e não demorou para que um belíssimo cavalo negro surgisse por entre as árvores. Montado sobre ele estava um homem coberto por sua armadura e segurando uma espada ensanguentada. Devido ao elmo, eu não consegui ver a sua face, mas não seria necessário olhar em seus olhos para saber que ele me iria matar. A consciência sobre o meu destino fez cada parte do meu corpo tremer. Ainda assim, eu limpei as lágrimas e engoli o pranto. Com o restante de coragem que ainda tinha, eu encarei o cavaleiro. Se eu tiver que morrer não será demonstrando o meu medo. Não sei por que os meus guias me abandonaram, mas espero que eles não façam o mesmo com o meu irmão.

O cavaleiro desceu do cavalo e apontou a espada para mim.

- Herege! - gritou em um tom repleto de ódio e de asco, lançando a arma em direção a mim antes que eu tivesse a chance de implorar por minha vida.

Um grito reverberou ao nosso redor, fazendo com que o cavaleiro parasse a espada há poucos centímetros do meu pescoço. Estremeci. Paolo não mais se encontrava atrás da rocha e os seus olhos aterrorizados estavam cravados na espada. A floresta começou a sussurrar, mas a minha atenção encontrava-se focada no homem a minha frente, quem abaixou a arma e olhou ao redor, parecendo assustado. Será que ele também ouvia às árvores? Não, ele é católico, jamais se permitiria tal abertura. Confirmando a minha suspeita, o cavaleiro mencionou aproximar-se do meu irmão. Meu coração batia fortemente dentro do peito e foi quando avistei um pedaço grande de pedra. Sem pensar duas vezes, peguei-a do chão e acertei-a na cabeça do homem. O elmo caiu e a pedra se partiu ao meio. Ele virou-se e golpeou-me com a força do seu punho, fazendo-me cair sobre o chão. Uma dor aguda iniciou-se em minha cabeça, intensificando-se rapidamente ao mesmo tempo em que minha visão começava a embaçar. Tentei forçar os meus olhos a focarem em qualquer ponto, mas consegui somente despertar uma forte tontura. Será que estou morrendo? Não posso morrer agora, Paolo precisa de mim! Tentei mexer-me, mas o meu corpo não me obedeceu. Senti alguém ajoelhar-se ao meu lado. Após algum esforço, os meus olhos conseguiram focar em algo, tornando-o visível.

Dois belíssimos olhos azuis foram a última visão que tive antes da escuridão me envolver.

AÛSUB - Helene e AugustoWhere stories live. Discover now