Um sorriso torto

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Cléo acordou com a campainha tocando.

Pela primeira vez em dias, teve uma boa noite de sono. O único problema era que o relógio ainda marcava nove da matina e, por ela, ficaria mais uma hora ou duas deitada. Esperou por mais alguns minutos que Dália atendesse a porta, mas isso não aconteceu. A campainha tocou outra vez.

— Dália, atende a porta, eu estou de pijama.

Não houve resposta, e isso já foi o suficiente para fazê-la acordar de vez. Não se preocupou com o baby-doll que vestia e nem com a brisa gelada que entrava pela janela entreaberta. Apenas uma coisa passava pela sua cabeça: Dália não havia voltado para casa. E quando abriu a porta, se deparou com um policial.

— É aqui que Dália mora?

Direto e sem rodeios, mas foi o suficiente para acalmá-la. Sua mente já era treinada para identificar pistas de coisas que as pessoas não queriam contar. "Mora" e não "morava". Fosse o que fosse, sua colega estava viva.

— Sim, é aqui sim. Mas ela não está. Gostariam de entrar? Vou preparar um chá.

O policial aceitou. Cléo colocou a água para ferver e se sentou à mesa, junto com os dois homens.

— Aconteceu alguma coisa?

— Você mora aqui também? Apenas vocês duas?

— É, dividimos o aluguel. Salário de jornalista não dá pra bancar muita coisa. O que aconteceu? Dália está bem?

— Qual é o relacionamento entre vocês?

Cléo se irritou pela forma em que a conversa estava sendo conduzida. Já era irritante não estar no controle da conversa — era a entrevistada dessa vez, não a entrevistadora —, mas a forma como o homem estava desviando da sua pergunta era inadmissível.

— Não vou dizer mais nada até saber o que é que aconteceu com a Dália e por quê vocês dois estão aqui.

O policial que até agora não havia se manifestado comprimiu os lábios.

— Certo, certo. Ela foi encontrada numa cena de crime, na casa do detetive Luther Cobain. Tem alguns ferimentos, mas está bem, fisicamente. Está no Hospital Santa Rita.

— E o que é que você quis dizer com "fisicamente"?

— Os ferimentos não foram graves. Não quebrou nenhum osso e os órgãos vitais estão intactos.

— Eu sei o que significa "fisicamente bem". O que me intriga, senhor, é o fato de você ter ressaltado a palavra "fisicamente". Isso indica que tem outra coisa errada e, pela minha experiência jornalística, digo que o problema é psicológico. O mais comum é estresse pós-traumático, o que me deixa ainda mais intrigada, tendo em vista que para isso acontecer é preciso um trauma. Então poderia, por favor, me explicar direito o que aconteceu com a minha amiga antes que eu resolva telefonar para um bom advogado e fazer o uso do meu direito ao silêncio.

— É por isso que eu odeio jornalistas. Um vizinho ligou para nós porque estava ouvindo gritos e batidas no apartamento de cima. Quando chegamos, encontramos Luther morto. Dália estava murmurando coisas sem sentido e, como estava ferida, chamamos uma ambulância. Ela não conseguiu nos dar nenhuma informação. É tudo que podemos dizer. Há uma relação romântica entre vocês?

— Não, não. Somos amigas, fizemos faculdade juntas. Dividimos as contas, nada mais.

— Sabe o que ela foi fazer lá?

— Ela e o Luther discutiram anteontem a noite. Ele é detetive, ela é jornalista. Ele falou sobre os assassinatos e a Dália começou a ir mais a fundo. Quando tínhamos informações suficientes, publicamos a matéria. Acontece que Luther não gostou muito e ligou para ela gritando. Ela queria pedir desculpas e resolver as coisas, então foi visita-lo. Não voltou para casa ontem. Imaginei que tivessem se resolvido e que fosse dormir por lá e, no calor do momento, tinha esquecido de avisar. Nunca iria imaginar que... Oh, céus...

— Não temos mais perguntas. Mas, se for necessário, entraremos em contato.

Cléo assentiu com a cabeça e abriu a porta para que os policiais deixassem o apartamento. Desligou o fogo da água fervente e colocar um sachê numa xícara. Depois que se trocou, bebeu o chá e foi ver sua amiga no hospital.

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— Só devo informá-la que Dália não está muito bem. Ainda hoje iremos transferi-la para a ala psiquiátrica.

Cléo já esperava por isso. Concordou sem dizer nada. A enfermeira a levou até a sala e a deixou a sós com a paciente.

— Como você me assusta desse jeito, Dália? Como está? Está bem?

Dália encarava o nada. Sua mente parecia distante. Ela brincava com os dedos, torcendo-os e estralando. O cabelo crespo estava bagunçado e sujo de sangue. As mãos estavam cobertas com gaze. Cléo achou que a outra sequer havia notado sua presença, mas antes que se aproximasse mais e tentasse chamar sua atenção, Dália falou com uma voz fraca e distante.

— Eu o vi, Cléo, juro que vi.

— Quem? Luther?

— Não, não... estava morto quando cheguei. Morto e esquartejado. Parecia uma festinha doentia. Daria uma ótima matéria, sim, daria sim...

Uma maquina de lavar com corpos dentro.

— Quem você viu?

— Eu vi um homem torto que andava sem parar. Parecia uma massinha preta só que... Só que... direto da porra do inferno. É, isso, da porra do inferno! Aquela coisa matou o Luther, eu sei. Matou. Matou todo mundo. Isso que é a porra de uma matéria! Que matéria!

— Que homem é esse, Dália? Ele já estava dentro quando você chegou? Querida, isso não faz sentido...

Mas fazia. Era o trecho de uma música que sua mãe cantava, quando começou a adoecer. Antes que Cléo fugir. E agora, por ironia do destino ou pelo simples carma que decidira persegui-la, estava se vendo na mesma situação. Conseguiria aguentar dessa vez? Sequer tentaria aguentar?

— Ah, não estava, não. Saiu da parede, acredita? Da parede. Ia me matar, acho. Mas não conseguiu. Mas ele vai. Vai me matar. Agora é tarde para ficar fora do rastro dele.

A enfermeira retornou avisando que havia acabado o tempo de visita. Cléo abraçou a amiga de leve, para não pressionar os ferimentos. Quando chegou na porta, Dália chamou pelo seu nome. Quando ela olhou para trás, viu uma Dália com os traços do rosto e os braços tortos. Ela sorriu com dentes afiados e, pela primeira vez no dia, a olhou nos olhos. Mas aqueles olhos não eram da Dália. Eram outra coisa.

— Você é a próxima. Não achou que ia fugir para sempre, achou?

O Homem TortoWhere stories live. Discover now