Balança Caixão

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Quando Cléo acordou, já eram duas da tarde. Todo o sono e a exaustão que estavam se acumulando durante os últimos dias foram pagos de uma única vez. Sentou-se na cama, sentindo o corpo dolorido — o preço a se pagar por dormir demais —, e logo ouviu o telefone tocar.

Sua mente ainda estava lenta, mais no plano dos sonhos do que no plano físico, e deixou que tocasse até que finalmente parou. Alívio. Enfim, silêncio. Paz. Naquela noite, não houve sonhos. Em compensação, nenhum pesadelo a atormentou. Como tudo deveria ser, se ela não fosse castigada pelos maiores infortúnios da vida. 

Cléo se levantou e tomou um banho quente. O cheiro do sabonete perfumado e o barulho da água batendo no piso e escorrendo pelo ralo fez com que seus músculos relaxassem; as memórias se misturando ao vapor, embaçando o vidro do espelho e saindo pelo pequeno vão da janela. Não se preocupou em segurar nenhuma.

Sem Dália.

Sem homem torto.

Eu não estou enlouquecendo.

O telefone tocou outra vez. Ela mordeu o lábio inferior para descontar sua insatisfação. Foi tomada por um mal pressentimento. Algo surgia no fundo de sua mente mas , no entanto, desaparecia antes de se formar. Não fez nenhum esforço para se lembrar, apenas trancou tudo aquilo num baú e impediu que viesse a tona. Melhor assim. Por outro lado, seu corpo desobedecia a mente. Embora Cléo não soubesse exatamente do que estava com medo, suas mãos tremiam e um suor frio brilhava em sua testa.

Por que não me deixam em paz? Por que simplesmente não me deixam em paz? 

Tudo estava em câmera lenta. O telefone tocava. O ar não entrava em seus pulmões. As pernas fraquejaram e Cléo despencou no chão. Arrastou-se com os braços pelo carpete até chegar na escrivaninha onde estava o telefone e arrancou o fio da tomada. Em seguida, empurrou a escrivaninha para o chão e bateu o aparelho até que alguns botões saíssem e parte do plástico se despedaçasse. Com uma tesoura, cortou o fio. E então ela riu.

Eu não estou enlouquecendo.

Eu estou ótima.

X X X

A luz do sol refletia as folhas verdes das árvores do parque. Crianças corriam atrás de uma bola de basquete pelo gramado. Outras menores iam para frente e para trás num balanço, empurradas por pais que, em sua opinião, eram protetores demais.

Não se lembrava da última vez que esteve num parque, nem da primeira. Sua mãe já havia sido o tipo que a levava para um parque aos fins semana? Segurava sua mão enquanto escorregava? Empurrava o balanço? Chamava outras mães para um piquenique? Não sabia. Provavelmente, nunca saberia. E talvez fosse melhor assim. Deixar enterrado o que está morto. Mas, as vezes, os esqueletos saiam da cova e dançavam na sua memória, desafiando sua sensatez. Quem era aquela mulher antes que a loucura consumisse cada pedacinho do seu cérebro?

Quem ela seria depois disso? 

— Você gosta de parques?

Era um garotinho, com uma bola de plástico azul na mão. Os cabelos enrolados e finos caiam sobre a testa. Deveria ter mais ou menos cinco anos, mas quando se trata de crianças é impossível saber com precisão.

— Há quem não goste?

— Eu nunca vi você aqui. Você tem filho? 

— Não costumo vir muito. Mas as vezes, a vida pode ser bastante estressante. Nada como ar puro para resolver os problemas.

— Eu venho todos os sábados, sabia? Sábado é dia de parque. Sua mãe também te trouxe pro parque?

Cléo travou por alguns segundos com a menção da mãe.

— Não, ela não trouxe não. Minha mãe mora bem longe.

— Bem longe. Você não faz ideia de quão longe ela está agora, faz? Não sabe aonde ela está desde que você a abandonou. Da mesma forma que abandonou Dália. Mas você não pode fugir. Porque ele vai te encontrar. Ele sempre te encontra.

A boca dela secou. As memórias a atropelaram com a força e a velocidade de um trem de carga. O garotinho continuava a olhá-la, os olhos adultos e desafiadores. O sorriso carregado de desdém. Sabia que havia conseguido desestabilizá-la.

— Como?

Os galhos das árvores agora estavam pretos e retorcidos, como braços e garras deformadas.

— Lembra do sangue escorrendo no piso da cozinha? Você lembra, não lembra? Porque ele se lembra de como gostou de ouvi-la gritar. Quer saber se você vai implorar pela morte como ela implorou.

Os balanços rangiam. O ferro dos brinquedos pareciam enferrujar em questão de segundos, até se tornarem completamente negros. Assim como os galhos, se enrolavam e retorciam, tortos como a entidade que a perseguia.

Crianças e adultos olharam para ela, sem piscar, com sorrisos doentios no rosto.

— Me deixa em paz, seu maldito!

Cléo estralou um tapa na face da criança, tão forte que a derrubou. No mesmo instante, tudo se desfez, e ela agora encarava um menino inocente chorando pela mãe, que vinha correndo com uma expressão nada satisfeita. A atitude chamou a atenção de todos, que a encaravam com incredulidade.

Ela não esperou para ver o que aconteceria. Correu o mais rápido que pôde, sem saber para onde iria, mas não importava: Cléo não poderia fugir. Ele sempre a encontra. 

O Homem Tortoحيث تعيش القصص. اكتشف الآن