Luzes Acesas

96 8 2
                                    

Sinceramente? Sim.

Cléo enrolou uma mecha dos cabelos no dedo indicador. Realmente havia acreditado que poderia fugir para sempre. As lembranças reprimidas do homem retorcido que sua mãe desenhava nas paredes eram agora vívidas e densas. Era quase como se pudesse ouvir os gritos e a melodia de ninar que ia e vinha, e conforme o sol desaparecia no horizonte e a lua brilhava com mais intensidade no céu, mais perto ela parecia estar daquela coisa. E era estranho pensar que aquela era a mesma lua que testemunhou a insanidade de sua mãe — embora agora essa questão tenha sido posta a prova — e via o ciclo se repetir nela. Uma herança bem estranha para se passar adiante. Não havia dúvidas de que seu sangue era ruim, maldito. Se tivesse uma filha, provavelmente esta também enlouqueceria. Talvez o mais sensato fosse matá-la assim que nascesse e a poupasse de tamanho sofrimento.

Culpou seu sangue pelo pensamento ruim. Olhou para a xícara suja na pia e uma lembrança pipocou na sua mente.

“Vai passar, querida, vai sim. Agora obedeça a sua mãe e vá brincar lá fora.”

E Cléo foi. No entanto, havia esquecido sua boneca e retornou para buscar. Encontrou sua mãe jogada ao chão, com os pulsos cortados. Correu para ligar para a emergência, que foi bem sucedida. Se essa foi uma boa ou uma má decisão, ela já não sabia dizer.

Tomou um banho e vestiu o pijama. O único som era o irritante tic tac do relógio. Dália não viria para casa nessa noite.

Não.

Dália não viria para casa nunca mais. Lágrimas brotaram, de medo e tristeza. Num gesto infantil, acendeu todas as luzes da casa, como se a claridade fosse impedir o demônio de encontrá-la. Mas não faria diferença, porque o Homem Torto não estava lá naquela noite.

X X X

Dália encarava a porta, perdida.

Havia tanto branco naquele quarto que ela imaginava que se um dia saísse dali, jamais usaria essa cor outra vez, e muito provavelmente socaria a cara de quem o fizesse. Seus olhos pesavam pelo sono causado pelos remédios que a fizeram tomar. Tentou pensar em quais outros efeitos colaterais aquilo poderia ter e o que exatamente estavam dando a ela, mas seu cérebro estava dopado demais para funcionar corretamente.

Passou a vida toda longe das drogas — não por falta de oportunidades — e terminava daquele jeito. Tentou mover seus dedos. Eles obedeceram. Levantou-se e tentou caminhar, mas as pernas bambearam e Dália terminou no chão. E então riu. Uma risada que não sabia de onde vinha, como se fosse de uma outra pessoa. Sua própria voz ecoava como se houvesse três mulheres iguais a ela, de sacanagem com a sua cara. Seus braços estavam fracos demais para erguê-la do chão. Não importa. Resolveu que dormiria ali mesmo. Virou-se de barriga para cima e ficou encarando a luz no teto. Ainda não haviam desligado, o que significava que ainda estava claro. Isso daria uma matéria e tanto. Mas quem acreditaria nela, não é? Se tornaria uma piada. No entanto, uma piada bem sucedida. Riu outra vez, e depois chorou. Foram pensamentos parecidos que a empurraram em direção a esse abismo que parecia não ter fim.

E então, algo começou a se formar dentro da lâmpada. Uma geleia preta se espalhava pelo vidro até preenchê-lo. Quando parecia que a lâmpada iria estourar, a coisa saiu pela borda, se espalhando pelo teto branco, como um ovo na frigideira. 

Dália se perguntou se estava delirando. Se aquele remédio estava fazendo com que visse coisas que não existem, que não estavam ali de fato, sufocando as memórias terríveis do apartamento do Luther. 

Uma voz rouca cantou no seu ouvido e um cheiro pútrido se espalhou.

— Eu vi um homem torto que andava sem parar.

Sentiu uma mão pesada e fria agarrar seu braço esquerdo. Podiam ser ossos. Ossos que se quebraram e calcificaram errado. Olhou espantada para o braço, a pele afundada e roxeando aonde os dedos deveriam estar. Mas não havia nada.

— Não, isso… Isso não é possível. — Dália riu — Não é real. Você não é real! Não há ninguém aqui além de mim!

A mão invisível a ergueu pelo braço e a atirou contra a parede. A geleia que até então estava no teto começou a se desfazer em líquido, fazendo chover dentro do quarto. Conforme caía, se tornava branco como leite.

Cada uma das gotas brancas do chão corriam para o centro do quarto, se transformando num montinho de geleia que aos poucos tomou uma forma humanoide, vestida com um terno roxo e segurando um guarda-chuva. Embora parecesse, aquilo estava longe de ser humano. Era tão bizarro e podre que nunca deveria ter pisado na terra como um humano. Dália teve certeza, olhando para aquele sorriso, que estava vendo um demônio – se é que não era o próprio Diabo.

O cheiro de enxofre a fazia querer vomitar, queimava seus olhos como se fosse spray de pimenta, descia ardendo pela sua garganta como Amônia. Dália sequer conseguiu gritar.

Os remédios que tomou a fizeram passar pela tortura de não conseguir fugir, permanecia jogada no canto ainda aquela coisa a largou. Riu mais uma vez, primeiro de medo e depois por pura loucura. Para onde correria? Ainda que pudesse, estava trancada com aquela coisa. E ainda que não estivesse, aquilo não via obstáculos em portas fechadas.

O Homem Torto agarrou seus pulsos, e ela não lutou. A girou várias vezes e jogou contra a parede outra vez. Os dedos tortos se transfiguraram em garras, que puxou suas pernas para perto dele. As garras rasgaram o dorso da mulher e arrancaram sua vida.

A última coisa que ouviu foi o cantarolar da música. 

O Homem TortoWhere stories live. Discover now