Capítulo 18 - Viktor

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Cinquenta e dois minutos. Eu sentia o outono se aproximar do inverno, a ventania batendo agressivamente em meu rosto, como pancadas de ar quase cortantes. Tive de cobrir parcialmente minha face com a gola do meu moletom, logo voltando a esconder minhas mãos nos bolsos da calça, pois, em poucos segundos, já podia senti-las congelar nas pontas dos dedos.

Eu havia me arrumado com pelo menos uma hora de antecedência, pensando ser mais provável Harvey chegar mais cedo que eu. Aparentemente, eu havia me enganado; agora fazia cinquenta e seis minutos, e eu era o idiota esperando alguém que não tinha o mínimo interesse em vir me ver.

Era isso. Eu não ficaria lá por mais nem um segundo; preferia morrer que dar aquele gosto a Harvey. Eu não sabia por que ainda me importava, ou ainda achava que ele agiria diferente. Tantos anos sendo um babaca, afinal, e isso não se resolveria com uma amnésia; era parte da sua essência.

No entanto, ao me preparar para levantar, notei sua silhueta aproximar-se preguiçosamente. A raiva subiu-me pelo corpo, e eu pude ter quase certeza de que meu rosto estava tão rubro quanto a cor do meu cabelo, preparando-me para xingá-lo de vários nomes diferentes. Mas, ao que Harvey se aproximava, os postes próximos iluminavam seus olhos inchados e ainda úmidos, acompanhados por lábios um tanto trêmulos.

O primeiro pensamento que passou pela minha cabeça, então, foi que ele havia de lembrado de algo. Realmente, para que ele se atrasasse daquela forma — quando parecia ainda mais ansioso por aquela conversa que eu —, o mais plausível era que houvesse tido uma crise. E eu automaticamente me senti culpado por não ter compreendido, mesmo que não houvesse brigado de fato com ele.

— O que aconteceu? — Murmurei com cuidado, pois, naqueles momentos, Harvey mais parecia uma taça de cristal na ponta de uma mesa; um movimento e eu sentia que ele poderia quebrar.

Mas ele não me disse nada em resposta. Apenas sentou-se ao meu lado, na beira da ponte, escondendo suas mãos nos bolsos do casaco. Seus cabelos dourados estavam parcialmente cobertos por um gorro azul, coisa que eu provavelmente acharia até fofo, não fosse a situação preocupante. A cada segundo em silêncio, várias coisas me passavam pela cabeça, levando-me a um estado de quase desespero, o qual eu permanecia estático, a procura de alguma mínima reação de sua parte. Será que ele havia se lembrado de tudo? Será que ele me odiava?

— Viktor. — Sua voz mais pareceu um sussurro do vento, apenas perceptível por conta da movimentação de seus lábios. — Você não me contou tudo, contou?

Engoli em seco. Era verdade, mas era apenas porque eu não sabia como ele iria reagir. Harvey havia acabado de perder os pais, afinal, e pensei que, dessa forma, estaria o poupando de mais problemas do que ele já tinha. Afinal, tudo aquilo era passado, certo? Eu claramente o estava perdoando, e não tinha como negar.

— Eu preferi não contar. — Sussurrei em resposta, envergonhado.

Passamos mais alguns segundos em um silêncio mútuo, fúnebre, pois eu tinha medo de deixá-lo mal ou irritado caso falasse mais alguma coisa. No entanto, quando eu menos esperava, Harvey ajeitou sua coluna e falou baixo, mas firme.

— Seja sincero comigo.

Assenti prontamente, ao que ele desviou o olhar para o rio antes de continuar.

— Você tentou se matar por minha causa?

Sua pergunta veio como um baque para mim, por mais que, no fundo, eu soubesse exatamente que era aquilo que ele iria me perguntar. Afinal, a cidade inteira soube, e não era mais uma novidade para ninguém que Viktor Fontaine havia tentado se enforcar com um cinto. Era tão patético que todos já sabiam. Por isso, era apenas questão de tempo para que ele descobrisse por outra pessoa, mesmo que eu tentasse esconder essa informação dele.

— Sim. — Sussurrei, me sentindo fraco e impotente. Como eu poderia mentir na cara dele? O mais certo a se fazer, naquele momento, era contar toda a verdade. — Eu não aguentava mais, Harvey. Eu não queria morrer, mas eu também não queria acordar de manhã e passar por tudo de novo, sabe? Você repicou minhas roupas na Educação Física, me jogou no rio em pleno inverno, me oprimia de tantas formas que eu fingia estar doente toda semana, apenas para não ir para a escola e passar por tudo novamente. Eu estava cansado, entende?

Mas ele não me respondeu nada, e sua face não estava em meu campo de visão. Seu corpo permanecia estático, então, aparentemente, não estava chorando; talvez estivesse refletindo, ou absorvendo aquelas informações. Mas o seu silêncio me assustava ainda mais que qualquer possível resposta que viesse de sua parte.

— Mas você não é mais essa pessoa, Harvey. — Me precipitei em dizer, de modo quase suplicante, para que ele não se sentisse mal. — Eu convivo com a depressão desde sempre, não é nenhuma novidade que eu tenha tentado em algum momento. E você mudou...

— Mas eu fui o gatilho para você tentar. — Murmurou, e toda a firmeza anterior de sua voz se transformou em uma fragilidade melancólica.

— Harvey...

— O que foi? Me diga que não é verdade.

— Eu... — Suspirei, sentindo minha voz vacilar. — Desculpa...

— Pelo quê? A culpa é minha. — Harvey aumentou seu tom de voz, não de forma agressiva, mas um tanto amarga, martirizando a si mesmo. Mas eu não me sentia mais em condições de retrucá-lo, pois nem ao menos sabia o que dizer.

E mais alguns longos segundos de silêncio se passaram. Harvey continuou a olhar o rio, escondendo seu rosto da minha visão, e provavelmente esperando que eu fosse embora e o deixasse sozinho. Ao menos seria o que eu esperaria, se fosse ele.

Então, eu me levantei silenciosamente, a fim de respeitar o seu espaço. Mas eu também estava tendo uma crise por dentro, porque não queria que as coisas mudassem entre a gente, por mais que tentasse ao máximo esconder essas minhas vontades em uma máscara de orgulho.

— Você vai ficar bem? — Murmurei.

— Eu não sei. Tenho que pensar um pouco a respeito... de tudo isso. — Murmurou ele em resposta. — Eu não posso continuar agindo tranquilamente quando tudo o que eu fiz está me matando por dentro.

Eu queria, mais que tudo, abraçá-lo e dizer que estava tudo bem, que eu não me importava com o que ele havia feito no passado e que estava disposto a esquecer tudo. Mas como poderia? Ele esqueceu, literalmente, mas eu não. E, enquanto eu continuasse a sofrer pelo meu passado, não conseguiria construir uma relação futura, mesmo que quisesse tanto que meu coração doesse. E doía, porque eu odiava quem ele costumava ser, mas me apaixonei por quem ele era. E, mesmo assim, por mais que eu quisesse com todas as minhas forças, eu não poderia estar com ele.

Ele achava que não me merecia, mas, na verdade, eu que não o merecia. Porque ele estava tentando de verdade se tornar uma pessoa melhor, mas, mesmo assim, eu continuava apegado ao passado, usando-o como desculpa para não seguir em frente. E, sinceramente, ele merecia alguém melhor.

Ele merecia alguém disposto a dá-lo o amor e cuidado que ele precisava naquele momento, quando havia acabado de perder os pais. Merecia alguém mais bonito, menos depressivo, mais gentil. Talvez ele formasse um bom casal com Sven. Mas com certeza só seria problema se ele decidisse ficar comigo.

Então, eu fui embora.

Me Faça Lembrar ⚣Where stories live. Discover now